Afro-oportunismo. Essa é uma palavra que parece fazer pouco sentido numa sociedade cingida pelo racismo. Isso porque designa pessoas que se fazem passar por negras para usufruírem de parte das conquistas recentes do movimento negro, como a própria visibilidade e maior representatividade na sociedade.
O termo pode muito bem ser aplicado a pessoas brancas que vivem todos os privilégios que a branquitude lhes reserva, mas se autodeclaram negras no momento de concorrer a uma vaga nas universidades públicas do país, fazendo uso dos dispositivos determinados pela lei de cotas raciais. Uma atitude que diz muito sobre a perversidade (e a cara de pau) de parte da população branca brasileira.
No atual contexto das campanhas eleitorais, o afro-oportunismo se tornou uma espécie de boia salva-vidas do político ACM Neto em sua candidatura ao governo do estado da Bahia. ACM Neto – que como o próprio nome diz, é neto de uma das maiores lideranças políticas da história do país, Antônio Carlos Magalhães, que por sua vez foi um dos expoentes do coronelismo brasileiro – se autodeclarou pardo no censo de 2016. E desde então, mas sobretudo agora, parece querer se valer da sua cor trigueira para surfar na onda da luta pela ampliação da representatividade negra na política do Brasil.
Sua insistência é tamanha que ACM Neto não só fez uso da tecnologia para bronzear ainda mais sua tez, como afirmou que na Bahia ninguém é branco (ainda que boa parte das novelas brasileiras teimem em dizer o contrário) e também tem denunciado um suposto sequestro da negritude pela esquerda brasileira, afirmando que políticos de centro-direita também podem se identificar como negros (pardos ou pretos).
O tema vem sendo debatido, por vezes com tons de chacota, que não escondem que essa postura, além de oportunista, também resvala numa possível fraude eleitoral. E, ao que tudo indica, a jogada de ACM Neto foi um tiro no pé, sendo alvo de uma enxurrada de críticas nas redes sociais.
Reconhecimento do poder negro
Só que existe algo muito mais importante do que os oportunistas de plantão, sejam eles os estudantes secundaristas ou os políticos artificialmente bronzeados.
O que está por trás desse afro-oportunismo é a constatação do crescimento e reconhecimento do poder negro no Brasil.
No campo político, isso fica especialmente evidente quando atentamos para as candidaturas ao Legislativo. Nunca antes na história deste país tivemos um número tão elevado de candidatos e candidatas negras. E não me refiro aos pseudo ou artificialmente negros, mas aos homens e mulheres negros historicamente engajados na construção de uma agenda política antirracista.
A situação é tão interessante que em muitos estados do país há várias opções de em que candidato/a negro/a antirracista votar para os cargos de deputado estadual e federal. Ou seja: é possível eleger diferentes candidatos negros e negras para o poder Legislativo, quebrando assim uma longeva tradição brasileira de sub-representatividade negra o Congresso Nacional.
Ao reconhecer o poder do negro, é possível colocar o negro no poder. E essa transformação, quando feita em consonância com uma perspectiva antirracista, pode ajudar no fortalecimento da democracia brasileira.
Embora a representatividade, sozinha, não resolva o problema do racismo no Brasil, sem ela não há mudança possível. E por ainda vivermos num regime democrático, temos a chance de ampliar as vozes e ações negras e antirracistas na formulação de leis e politicas públicas de âmbito estadual e federal da nação. Isso não é pouca coisa.
Comprometer-se a construir um Brasil que tenha cada vez mais negros no poder significa, antes de tudo, eleger esses candidatos negros e negras historicamente engajados na luta contra o racismo, mas não só.
Antirracismo e democracia
Muitos têm dito que esta será a eleição presidencial mais importante da história do país. E como historiadora, mas também como mulher negra implicada neste 2022, tendo a concordar.
Se por um lado não temos um/a candidato/a negro que tenha alguma chance de ser eleito/a como chefe máximo do Poder Executivo, por outro, “é preciso estar atento e forte” para compreender que o antirracismo pode e deve ser pauta de candidatos brancos que reconheçam e critiquem a força do racismo na organização social, política, econômica e cultural do Brasil.
E não é preciso ser nenhum especialista em teoria política para reconhecer que candidato se comprometerá positivamente com um Brasil em que, ao que tudo indica, teremos mais negros no poder.
Se olharmos para o passado recente do Brasil, teremos certeza de que há um caminho a ser trilhado. Um caminho que permite que o antirracismo e a democracia se fortaleçam mutuamente.
Não há por que esperar para escolhê-lo.
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.