“O processo de participação das mulheres negras em Pequim foi liderado por Lélia Gonzalez”, diz a feminista negra Dulce Pereira

Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Em ato de projeto de memória Lélia Gonzalez, é recuperado o envolvimento da ativista na 4ª Conferência Mundial sobre as Mulheres, ocorrida em 1995

Os 20 anos sem Lélia Gonzalez, feminista negra e fundadora do movimento de mulheres negras brasileiras, estão marcando o ano de 2014. Em maio, ocorreu seminário e entrega de premiações para organizações de mulheres negras. No último 10 de julho, aniversário de falecimento da ativista e professora universitária, ela foi lembrada nas redes sociais por militantes do movimento de mulheres negras e do movimento negro. Na última terça-feira (22/7), em ato de lançamento do livrofotobiográfico em sua homenagem, a trajetória de Lélia Gonzalez foi recuperada por familiares, feministas negras, acadêmicas e sacerdotes de terreiro.
 
Na redescoberta de Lélia Gonzalez, a atuação dela no processo de organização da 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, foi resgatada por Dulce Pereira, professora universitária da Universidade Federal de Ouro Preto e ativista do movimento negro. Pereira integrou a delegação brasileira na Conferência de Pequim, em 1995. “O processo de participação das mulheres negras em Pequim foi liderado por Lélia Gonzalez. Pela participação nos Comitês da ONU e junto com Esmeralda Brown, da ONU, nós asseguramos, nesse coletivo, o debate profundo e sério sobre a questão da mulher negra no mundo. E vários outros grupos de mulheres de outros países que não tinham a possibilidade de fazer esse debate interno, fizeram o debate no processo de construção de Pequim e acabaram criando processos de políticas públicas em seus próprios países”, conta.
 
Dulce lembra que a Conferência de Pequim foi um momento de apoio das mulheres entre si, enfrentando divergências de pensamento e visão política e de mundo. “O processo de organização de Pequim também garantiu a presença que não existiria de mulheres de origem islâmica que, em geral, não tinham voz, até porque como os Estados nacionais participavam da organização, essas mulheres, muitas vezes, não tinham possibilidade realmente de se colocar”, aponta.
 
Reconhecida como uma das conferências das Nações Unidas que reorganizou a agenda internacional, Pequim avançou pelas definições de gênero, empoderamento das mulheres e transversalidade das políticas públicas, tal como destacado na apresentação da edição em português da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, assinada pela embaixadora Maria Luiza Viotti.
 
Feminismo negro – Na opinião de Dulce, o aporte teórico feminista é outro aspecto importante de Pequim. “Eu acho que um fato importante foi a construção teórica do que significa a mulher negra como categoria teórica e existencial nos contextos nacionais. Foi, principalmente, em Pequim que se conseguiu de forma muito precisa se discutir a economia da desigualdade. Como é que a desigualdade se materializa em realidades econômicas excludentes? E foi, principalmente, em Pequim que a ideia da tecnologia de equidade começou a se consolidar e muito liderada pelas mulheres negras”.
 
Ela recorda a rede de apoio que as mulheres firmaram, inclusive, compartilhando quartos de hotel e varando noites em discussões. Segundo Dulce, os tensionamentos entre negras e brancas fizeram parte da disputa política, mas não criaram obstáculos para o avanço da agenda das mulheres negras. “Foi um momento de maior diálogo entre as feministas negras e as feministas não-negras brasileiras. A discussão foi muito aprofundada. A forma que se trabalhava no momento, se dizia elas e nós. Havia essa fragmentação. Eu diria que essa fragmentação ainda existe de certa forma, mas não de forma a retirar das mulheres negras a possibilidade do debate e a possibilidade do exercício, do poder e da construção do feminismo”, avalia.
 
Inspiradora para o empoderamento – Uma das principais ativistas do movimento de mulheres negras, Sueli Carneiro – filósofa e fundadora do Geledés – fez um depoimento emocionado sobre Lélia Gonzalez. “Ela decidiu a minha vida. Foi quando a ouvi, pela primeira vez, na biblioteca municipal de São Paulo, num seminário de feministas. Ela era a única mulher negra e acabou com a festa simplesmente. Por onde ela passava, era antes e depois de Lélia Gonzalez. Foi uma coisa tão vigorosa, do ponto de vista emocional, que tive a sensação que ela tinha a capacidade de ouvir a minha mente, escutar o meu coração e verbalizar todas as coisas que até então eu não era capaz de organizar racionalmente em termos de sentimento de opressão, de exclusão. Mas, sobretudo, de possibilidade de luta e resistência”, compartilhou.
 
Carneiro conclamou a disseminação do pensamento de Lélia Gonzalez por meio de seus próprios textos “pela contribuição teórica acadêmica e intelectual”. Gonzalez era graduada em História, Geografia, Filosofia e Antropologia e doutora em Comunicação. Foi professora de Letras e diretora do Departamento de Ciências Sociais e Políticas da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Em sua fala, Sueli Carneiro salientou: “Chega de as novas gerações lerem Lélia a partir de seus comentadores, entre os quais me incluo. É hora de beber no original. Essa é a possibilidade que esse projeto”.
 
Para o filho de Lélia Gonzalez, Rubens Rufino o pensamento dela continua vivo e inspirando as novas gerações de mulheres negras. “O que é interessante perceber é que o pensamento dela, de 30 atrás, é o pensamento de hoje. Ela conseguiu se antecipar aos acontecimentos de hoje. E, ao mesmo tempo, fico extremamente orgulhoso dessas homenagens, ver o que ela representou para o movimento de mulheres negras, para o movimento de mulheres e para o movimento negro. Esse legado dela transcende para todo mundo”.
 
Contemporânea de Gonzalez, a ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), destacou o legado. “O discurso que foi construído pela população negra em todas as manifestações, não apenas essa reconhecida manifestação acadêmica, eu acho que é uma parte extremamente importante do que ela foi capaz de provocar na gente”, disse a ministra sobre Lélia Gonzalez.
 
O projeto Memória Lélia Gonzalez, do qual é parte o livrofotobiográfico, é uma realização da Redeh (Rede de Desenvolvimento Humano), com apoio da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e da Fundação Banco do Brasil.
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