O que ainda falha no enfrentamento à violência contra as mulheres?

12/12/25
Por Maria Sylvia de Oliveira e Amanda Vitorino Melonio

O ano de 2026 marcará duas décadas da promulgação da Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, instrumento reconhecido nacional e internacionalmente como uma das legislações mais avançadas no enfrentamento à violência contra a mulher, especialmente no âmbito doméstico e familiar. Celebrar 20 anos dessa legislação é também olhar o caminho percorrido e reconhecer que, apesar dos avanços normativos importantes, seguimos vivenciando indicadores alarmantes de violência letal de gênero, que desafiam a eficácia das políticas públicas existentes.

Os números mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), nos convocam à reflexão: entre 2012 e 2022, ao menos 48.289 mulheres foram assassinadas no país. Apenas em 2024, 3.700 mulheres perderam a vida de forma violenta. Quando analisamos os dados de feminicídio, ou seja, o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres, somam-se 1.492 casos registrados em 2024, o maior número desde a criação da Lei do Feminicídio. Entre as vítimas, 63,6% eram mulheres negras, evidência inequívoca de que a violência letal no país possui marcadores raciais e reflete estruturas históricas de desigualdade. 

A desigualdade racial é evidente. Mulheres negras seguem sendo as que mais sofrem, vivenciando taxas mais elevadas de violência doméstica, feminicídio e letalidade decorrente de ações estatais ou omissões institucionais. Esse recorte  reafirma a centralidade da interseccionalidade raça-gênero na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas orientadas à prevenção da violência. O enfrentamento à violência de gênero, portanto, deve focar  simultaneamente no sexismo, racismo e desigualdades socioeconômicas.

No recorte territorial, a cidade de São Paulo registrou, até outubro de 2025, 53 feminicídios, o maior número desde o início da série histórica em 2015. O dado tornou-se ainda mais simbólico ao coincidir com o período dos “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres”, quando casos de extrema brutalidade ganharam repercussão nacional, incluindo o episódio no qual uma mulher foi atropelada, arrastada por quase um quilômetro e teve as duas pernas amputadas.

Embora a Lei Maria da Penha represente um marco jurídico fundamental, sua aplicação costuma incidir quando a violência já está instalada. A resposta é reativa: protege a mulher já ferida, já agredida, já ameaçada. 

A verdade é que o Estado brasileiro ainda falha em intervir sobre os fatores estruturais que alimentam a violência de gênero, como a misoginia, o discurso de ódio, a desigualdade racial e a naturalização da subalternização das mulheres.

Os sinais de falha institucional são explícitos. Segundo o FBSP, em 2024 mais de 100 mil medidas protetivas foram descumpridas. Isso significa que, a cada 10 mulheres com medida protetiva, quase duas tiveram sua proteção violada, foram vítimas de novas violências cometidas por seu agressor.

A Pesquisa Nacional de Violência contra Mulher, publicada pelo DataSenado, revela outro dado: em 40% dos casos de violência, nenhuma testemunha ofereceu ajuda.  Isso significa que o silêncio social segue legitimando a agressão, que ainda existe medo, descrença nas instituições e, sobretudo, naturalização da violência contra mulheres.

A violência contra as mulheres é um fenômeno social, político e cultural. Portanto, não será solucionada apenas por meio da ampliação de punições. Agravar penas não transforma mentalidades, não rompe ciclos violentos, não educa, não previne reincidências. O enfrentamento à violência contra a mulher exige mudanças profundas nas relações sociais, nos modelos de masculinidade, nas práticas institucionais e na forma como a sociedade compreende e responde às violências de gênero.  

Há a necessidade de se promover formação e educação em direitos humanos na esfera pública para uma mudança da cultura misógina em nossa sociedade. A própria Lei Maria da Penha já aponta caminhos que pouco se implementam. Entre as medidas protetivas de urgência para o agressor, está prevista a obrigatoriedade  do comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação, além de acompanhamento  psicossocial. Entretanto, essa medida é pouco aplicada, quando deveria ser cumulada com o afastamento do lar e monitoramento eletrônico.

É importante, também, criar mecanismos que afastem a reincidência do agressor, não apenas contra a vítima atendida pela medida protetiva, mas para outras mulheres, sejam essas companheiras, mães, filhas e/ou irmãs.

O Brasil ocupa hoje a 5ª posição no ranking global de assassinatos de mulheres, concentrando cerca de 40% dos casos da América Latina. Trata-se de um diagnóstico contundente: a sociedade brasileira está falhando. Falha o Estado quando não previne; falha a sociedade quando naturaliza; falha o sistema de justiça quando não protege; falha a cultura que segue legitimando a violência contra as mulheres.

É fundamental reconhecer os limites dos instrumentos jurídicos no enfrentamento à violência de gênero. Sem políticas de prevenção, serviços de proteção eficazes, mecanismos ágeis de responsabilização e uma rede intersetorial robusta, a resposta penal continuará sendo tardia, fragmentada e insuficiente. A legislação, embora essencial, não tem sido capaz, por si só, de garantir o que é mais urgente: que as mulheres vivam e permaneçam vivas.

Diante disso, o enfrentamento ao feminicídio requer um conjunto articulado de ações, tais como:

  • Políticas públicas interseccionais;
  • Iniciativas educativas capazes de combater o machismo e o racismo;
  • Serviços especializados acessíveis e eficientes;
  • Cooperação entre Estado, sociedade civil e organismos internacionais;
  • Investimentos consistentes em prevenção, e não apenas em medidas repressivas.

 O feminicídio não é apenas o ato extremo da violência de gênero: é a derrota de uma sociedade inteira, é a interrupção violenta de futuros possíveis.


Maria Sylvia de Oliveira – Advogada; Diretora Executiva e Coordenadora da área de Gênero, Raça e Equidade de GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra; Mestre em Ciências Humanas, pelo programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades – Diversitas – da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

Amanda Vitorino Melonio – Advogada, pós-graduada em Direitos Humanos e Lutas Sociais, pelo  CAAF/UNIFESP e em Direito Digital e Direito Constitucional, ambas pela PUC Minas.

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