O que é ser negro na Bahia? Veja depoimentos de artistas e personalidades

Lázaro Ramos, Dadá, Érico Brás, Carlinhos Brown, Tia Má, Carla Akotirene, Márcio Victor, Margareth Menezes, Ordep Serra, Muniz Sodré, Aldri Anunciação, Major Denice Santiago, Lívia Natália, Virgínia Rodrigues, Lívia Vaz e Vovô do Ilê falaram ao G1. Confira

Por Phael Fernandes e Danutta Rodrigues, Do G1 BA

Conjunto de fotos da Tia Má, Érico Brás, Margareth Menezes e Carlinhos Brown
Tia Má, Érico Brás, Margareth Menezes e Carlinhos Brown (Foto: Arte/ G1)

No dia da Consciência Negra, o G1 perguntou para artistas e personalidades sobre “O que é ser negro na Bahia?”. Veja abaixo os depoimentos:

Aldaci dos Santos (Dadá)
Chefe de cozinha | Salvador

Dadá - mulher negra, usando turbante e roupa branca- em pé, sorrindo e  com os braços estendido
Dadá fala sobre o que é ser negra na Bahia. — Foto: Arquivo Pessoal

“Ser negra na Bahia para mim é motivo de orgulho. Orgulho de ser baiana, um estado de mistura de cores, boa energia, cultura e talentos”

Aldri Anunciação
Ator, apresentador e escritor | Salvador

Aldri Nascimento - homem negro de cabelo crespo, usando moletom cinza- sentado ao ar livre sorrindo
Aldri Nascimento é ator e apresentador e fala sobre o que é ser negro na Bahia. — Foto: Arquivo Pessoal

“Não é diferente de ser negro de todas as Américas. Talvez ser negro na Bahia seja diferente de ser negro em países africanos. Ser negro na Bahia é ser um ponto de encontro de vozes diferentes, de histórias diferentes. É uma especificidade muito única. Diferencia a gente dos negros da Europa, americanos. É outra solaridade. O sol da gente brilha sempre de acordo com as dificuldades históricas pelas quais passamos. É estar em uma encruzilhada cultural bastante ativa”

Carla Akotirene
Pesquisadora | Salvador

Carla Akotirane - mulher negra d cabelo cacheado, usando camiseta e batom vermelho-  sentada sorrindo
Carla Akotirane é pesquisadora e fala sobre o que é ser negra na Bahia. — Foto: Arquivo Pessoal

“Viver na Bahia é um paradoxo para a pessoa negra. O tempo todo somos colocados no lugar do espetáculo. Em algum momento, a elite branca, que comanda todas as instituições, se apronta, se veste, para ver nossa dança, nosso teatro e música. Por outro lado, existe um outro espetáculo, que está nas nossas comunidades. Falo do espetáculo presenciado por essa mesma negritude que tem que correr o tempo todo da polícia, tem que correr de abordagens violentas, tem que correr para pegar o ônibus, porque vai ser apedrejado, já que aqui é um território marcado por muito ódio e intolerância religiosa. Então, eu vejo a Bahia como esse lugar do negro que vive uma cena colonial. Hora ele está dançando, performando a sua arte espiritual como forma de resistência aos sofrimentos que vive. E outra hora ele, o negro, está fugindo, correndo. O estado da Bahia bate muito no corpo e na espiritualidade do negro”

Carlinhos Brown
Cantor, percussionista e compositor | Salvador

Carlinhos Brown - homem negro de barba grisalha, usando camiseta branca e turbante verde- tocando durante um show
(Foto: @THISGODELREY)

“Ser negro na Bahia é buscar constante aproximação social. É evidenciar que fomos escravizados e não escravos. Mas é também manter com rigor e disciplina todas as heranças e saberes ancestrais que passam pela música, pela culinária e pela religiosidade. Amo ser negro na Bahia, mesmo que ainda existam rechaço e preconceito. Então, ser negro na Bahia é celebrar também a possibilidade de que em nós, nem tudo vem da dor e que a violência não faça parte do nosso convívio. Quero ser negro, quero ser miscigenado e, sobre tudo afro-brasileiro”

Major Denice Santiago
Responsável pela Ronda Maria da Penha | Salvador

Major Denice Santiago - mulher negra de cabelo, preso, usando uniforme de major- sentada diante de uma mesa de escritório
Major Denice Santiago, responsável pela Ronda Maria da Penha, fala sobre o que é ser negra na Bahia. (Foto: Danutta Rodrigues/G1)

“Ser negro na Bahia é uma mistura de significantes: ora somos festejados por sermos exóticos e embelezarmos com nossa cultura, nosso sorriso, nossa força. Ora somos excluídos pelas mesmas características e tantos outros significados. E ser mulher negra na Bahia? É o exercício permanente de resiliência, resistência e fé. É entender que movemos a história deste estado e temos o dever e o devir de impulsioná-lo, modificá-lo, recriá-lo. À mulher negra cabe também o movimento de lutar pelas suas (e seus), pelo que acredita, pelo potencial de fazer girar este mundo”

Érico Brás
Ator, cantor, humorista e apresentador | Salvador

Érico Brás - homem negro, careca e de pouca barba, usando camisa branca- em pé olhando para frente
Érico Brás fala sobre o que é ser negro na Bahia (Foto: Arquivo Pessoal)

“É ter consciência plena da responsabilidade em manter a cultura africana viva nessa diáspora que é o estado da Bahia. Mas especificamente Salvador, que é uma cidade absolutamente negra no sentido pleno da palavra. Quando eu digo isso, é porque na Bahia se preserva grande parte das religiosidades dos saberes, dos costumes. Ser negro na Bahia é ter consciência que a gente precisa avançar um pouco mais, no ponto de vista econômico, cultura etc. Ser negro na Bahia é bom, mas pode ser melhor”

Lázaro Ramos
Ator, escritor e apresentador | Salvador

Lázaro Ramos - homem negro de pouca barba e cabelo, usando camiseta preta- sentado
(Foto: Bob Wolfenson/Divulgação)

“Primeira coisa que eu gosto de falar é sobre essa identidade cultural que existe nessa terra pela população negra. Isso é um pouco o que me descreve, até hoje, mesmo estando fora de Salvador. É parte cultural que me formou. Todas as expressões culturais que estão aqui são o que me compõe, o lado que, talvez, tenha mais orgulho de mim. Por outro lado, é um lugar onde há muita luta. Luta por reconhecimento, por justiça. Viver num lugar onde você ainda tem que ter o assunto negritude como protagonista da sua vida também, mesmo quando você não quer. Por outro lado, me dá vontade dizer, que é um lugar de lutas, mas também de muitas maravilhas”

Lívia Natália
Escritora | Salvador

Lívia Natáli - mulher negra de cabelo cacheado, usando camiseta colorida e batom marrom - em pé olhando para frente
Lívia Natáli, escritora, fala sobre o que é ser negra na Bahia (Foto: Arquivo Pessoal)

“O poeta José Carlos Limeira afirmou, certa vez, que é necessário ter coragem para ser uma pessoa negra vinte e quatro horas por dia. Ser uma mulher negra, intelectual e escritora, circular por ambientes dominados pela branquitude sistematicamente racista é, antes de tudo, um desafio, mas é também uma estratégia de sobrevivência coletiva. Compreendo que precisamos ser um corpo-quilombo, resistente, que seja abrigo para irmãs e irmãos, uma voz que represente os inauditos.”

Lívia Vaz
Promotora | Salvador

Lívia Vaz - mulher negra de cabelo cacheado, usando camisa branca e batom rosa- sentada sorrindo
(Foto: Evandro veiga/correio)

“Ser mulher negra na Bahia é dar continuidade ao legado de luta e resistência das nossas ancestrais pelo reconhecimento de igual dignidade ao povo negro desse país. Ser mulher negra no sistema de justiça ainda significa ser a exceção que confirma a regra de exclusão das pessoas negras dos espaços de poder e decisão.”

Maíra Azevedo (Tia Má)
Jornalista | Salvador

Maíra Azevedo - mulher negra de cabelo cacheado- em pé olhando para baixo
Maíra Azevedo, a Tia Má, fala sobre o que é ser negra na Bahia. — Foto: Arquivo pessoal

“É precisar o tempo todo utilizar da criatividade para segurar a existência. A Bahia, ainda que seja o estado mais negro do Brasil, é um estado extremamente racista. Nascer preto aqui é ter que estar o tempo todo burlando um sistema excludente, mas a gente sobrevive. E, com criatividade, a gente cria mecanismos para assegurar a nossa vida, a nossa existência. Mas gente consegue fazer arte e seguir em frente”

Márcio Victor
Cantor | Salvador

Márcio Victor - homem negro usando, óculos de sol,  camiseta e chapéu colorido- em pé sorrindo
Márcio Victor, do Psirico, fala sobre o que é ser negro na Bahia. — Foto: Elias Dantas/Ag. Haack

“Para mim, ser negro na Bahia é bom demais. A gente tem um berço de cultura que nos liga totalmente a uma herança muito rica, deixada pelos nossos ancestrais, pelos afro, que vieram dessa ligação da África. Mas ainda existe uma grande discriminação, essa coisa de samba de roda, de vir do recôncavo, dos negros que se refugiaram pra cá e até hoje a gente vive na pele a discriminação, o preconceito e a tentativa de uma inversão de valores que a sociedade quer impor até hoje, que é essa coisa da separação, da divisão, do menor, do maior e querem sempre que a gente se abata com essa tentativa de diminuir e tirar nossos valores”

Margareth Menezes
Cantora | Salvador

Margareth Menezes - mulher negra de cabelo cacheado, usando roupa beje- sentada com a mão esquerda apoiando o rosto
(Foto: José de Holanda)

“Negro e baiano é uma luta constante para você ter reconhecimento do seu valor, do seu lugar de cidadão, dos seus direitos de cidadão, o reconhecimento da contribuição dos povos de matrizes africanas. Predominantemente, é um lugar onde o negro está na sua maioria, mas com pouco espaço de reconhecimento dentro do seu valor, da sua colaboração, da sua participação pelo próprio racismo integrado na divisão das riquezas. A sociedade baiana precisa reconhecer o valor do povo negro, mas não só como questão folclórica, mas como atores sociais de representatividade. Nós precisamos fazer isso. Não há outra direção, ainda mais para esse futuro que estamos vendo. É uma constante luta de reconhecimento, pela representatividade e pelo direito de trazer oportunidades novas para juventude negra”

Muniz Sodré
Escritor, jornalista e sociólogo | São Gonçalo dos Campos

Foto em preo e branco de Muniz Sodré - homem idoso negro, usando óculos de grau
Muniz Sodré fala sobre o que é ser negro na Bahia. — Foto: Divulgação/UFRJ

“Anos atrás, eu me encontrei em um avião com uma pessoa, uma artista baiana, uma amiga de longa data, e eu perguntei como as coisas andam na Bahia. Ela me disse: “As coisas estão estranhas. Eu sou moradora da Barra, e lá tem muita gente de trancinha, de sandálias”. Ela estava um pouco chateada com isso. Sem ela saber, o discurso dela era de puro preconceito. Uma grande parte da população negra estava abandonando seus guetos tradicionais, os lugares de morada tradicional e ocupando outros espaços. Ou seja, os lugares marcados para os negros estavam se desmarcando. O negro, na Bahia, foi conquistando gradativamente, digamos, lugares a que antes não tinham acesso. Ser negro sempre foi difícil, em todo lugar, inclusive na Bahia. O racismo brasileiro obedece uma lógica de lugares. Cada macaco no seu galho. Cada um no seu bairro, embora isso não seja aparente, mas isso está um pouco acabando. Ser negro hoje, na Bahia, apesar do que digam os privilegiados, apesar das dificuldades, é, hoje, uma glória”

Ordep Serra
Antropólogo | Cachoeira

Ordep Serra
Ordep Serra, antropólogo, fala sobre o que é ser negro na Bahia. — Foto: Arquivo Pessoal

“É uma resposta complexa. A juventude negra está sendo dizimada de maneira impiedosa pela brutalidade policial. Quando tomei posse da cadeira de nº 27 da Academia de Letras da Bahia, eu comecei por fazer uma homenagem para esses jovens dizendo que a Bahia está sendo branqueada a bala. Um negro na Bahia tem que se sentir solidário com esses que estão nos guetos, com esses que estão encarcerados injustamente, sem culpa formada, com os enfermos, com essas crianças negras a quem se rouba o futuro. Eu tenho motivos para indignação, para tristeza, quando penso nos meus irmãos negros, naqueles que não tiveram as oportunidades que tive. Mas também me sinto muito orgulhoso da minha gente. Basta pensarmos nos nossos grandes artistas, nossos escritores, os cientistas negros, nossos professores tão brilhantes. O orgulho é muito grande. Me sinto feliz por pertencer a esse povo”

Virgínia Rodrigues
Cantora | Salvador

Virgínia Rodrigues - mulher negra, careca- em pé sorrindo
Virgínia Rodrigues, cantora, fala sobre o que é ser negra na Bahia. — Foto: Pico Garcez / Divulgação

“Ser negra na Bahia é como ser negra no Brasil inteiro. Como em todo Brasil, o racismo aqui é velado. Não se assume e nem nunca se assumiu que o negro é tratado com inferioridade. As pessoas não assumem que tem preconceito de raça. Nunca assumiram. Todo mundo vive isso. O negro, na Bahia, tem que ter cuidados que os brancos não têm em lugar nenhum que ele chega. Para não ser, por exemplo, taxado de ladrão. Preocupação essa que os brancos não têm. O tempo inteiro você tem que está armado, mas armado com as palavras. Com medo de apanhar da polícia, ser confundido com bandido”

Antônio dos Santos (Vovô do Ilê Aiyê)
Um dos fundadores do Bloco Ilê Aiyê | Salvador

Vovô do Ilê- homem idoso negro, de dreads grisalho, usando fone de ouvido- em pé sorrindo
Vovô do Ilê, um dos fundadores do Ilê Aiyê, fala sobre o que é ser negro na Bahia. — Foto: Ricardo Prado/Divulgação

“É viver no dia a dia sempre em busca de dias melhores. Apesar de ser maioria nessa terra, ainda existe um apartheid muito grande. Se você não for um negro bastante consciente, a coisa fica cada vez mais difícil. Ser negro na Bahia é estar a todo tempo em busca de liberdade, igualdade e respeito. Acreditando que vai ficar melhor. A gente tem que entender que na Bahia o problema é muito sério. Não é social, é racial. Você tem que estar sempre, o tempo todo, alerta. Nunca esqueça que você é negro, aqui na Bahia. Porque, se você esquecer que é negro, alguém vai te lembrar. Ser negro na Bahia, é ficar 24h em alerta. Mas é saber que você pode ser comandante nessa terra, que é nossa”.

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