O que ori não quer…, por Sueli Carneiro

Ogun, na tradição religiosa negro-africana, é o dono dos caminhos do mundo, e ele os abre ou fecha aos seres humanos reverenciando seu irmão Exu, aquele que permite ou não os encontros. De comum acordo, parece que eles desautorizaram metáforas ecumênicas que escondem desigualdades no exercício da fé religiosa, que tergiversam diante das perseguições dos iniciados nos cultos afro-brasileiros, que mascaram intolerâncias e simulam diálogos inter-religiosos inexistentes para todos. Religiões de resistência diferem das religiões da ordem e do poder ,e aparentar que caminham juntas é incorrer num simulacro que os orixás mostraram repudiar.

Por Sueli Carneiro no Jornal Correio Braziliense – Coluna Opinião

Assim, a foto oficial da delegação brasileira que representou o Brasil nos funerais do papa João Paulo II refletiu o ecumenismo real e possível em nossa sociedade. A presença de mãe Nitinha – a iyalorixá convidada pelo presidente para completar o quadro de tolerância religiosa da delegação – favoreceria ilusões de igualdade religiosa que as dificuldades encontradas por ela para se encontrar com os demais membros da delegação desmentem. Segundo noticiado pela imprensa, a iyalorixá chegou ao aeroporto às 21h35, cinco minutos após o horário previsto para a decolagem do vôo que a levaria ao encontro da delegação em Brasília. Ela e seu filho tentaram convencer um funcionário da Varig a retardar a decolagem do avião, que já havia recolhido as escadas, mas não conseguiram.

Sobre a atitude do funcionário da Varig que a atendeu, disse a iyalorixá: “Ele não disse, mas ficou claro que não acreditou que eu fosse viajar com o presidente para Roma”. A distinção presidencial tornou-se inócua diante da “convicção íntima” do funcionário da inadequação entre a figura daquela matriarca religiosa e uma viagem para Roma com o presidente da República, uma dúvida que dificilmente lhe ocorreria em relação aos outros religiosos da delegação, sobretudo pela visibilidade midiática de que gozam alguns, o que certamente asseguraria a esses, em caso semelhante, tratamento excepcional que a situação poderia merecer. Porém, para uma mãe-de-santo, o procedimento foi padrão. Como informou a Varig, o funcionário cumpriu a norma.

O episódio aponta ainda para as outras assimetrias entre as religiões de resistência e as demais e entre o status de suas lideranças religiosas. Diz o noticiário que houve esforços do Palácio do Planalto para assegurar o embarque da iyalorixá. Para isso seria necessário que dinheiro fosse depositado em sua conta para que ela comprasse uma passagem para Recife e embarcasse na madrugada, chegando a tempo para embarcar na escala que faria o avião presidencial naquela cidade. A estratégia ficou inviabilizada pelo fato de a iyalorixá não ter conta bancária e, segundo funcionário do Planalto, a transferência do referido recurso para uma conta de seu filho – como por ela sugerido – não ser prática burocraticamente autorizada. A iyalorixá não dispunha também de outros instrumentos de cidadania comuns aos setores sociais dominantes, religiosos ou não: não tinha passaporte, o que lhe valeu mais atrasos nos procedimentos necessários para a viagem.

Dadas essas diferenças no plano real ou simbólico, que sentidos poderia expressar a presença de uma iyalorixá numa comitiva ecumênica, especialmente num contexto social em que aqueles que representam a continuidade da ancestralidade negra e de seus deuses no Brasil são majoritariamente as vítimas de chacinas como a ocorrida em 31 de março último na Baixada Fluminense, onde 30 pessoas foram mortas, dentre elas muitas crianças e adolescente, por agentes do Estado.

Os corpos negros ali chacinados, em exibição pública de grotesca indignidade humana nas fotos dos jornais, são a face real do “ecumenismo” social e religioso que aqui se pratica sobre os filhos dos orixás. Esse era a martírio que deveria ser apresentado pelo Brasil ao também exposto corpo do Sumo Pontífice, para que na vida eterna ele clamasse ao Criador providências diante da inutilidade de seu pedido de perdão ao povo negro (pela histórica conivência e beneficiamento de sua Igreja com a escravidão) para reverter a sua persistente exclusão e genocídio. No maior país católico do mundo, negros são mortos a granel, seus corpos inertes são expostos a uma visibilidade pública que em vida lhes foi sempre negada, e o ecumenismo representado na foto da delegação oficial não empreende gestos públicos de indignação, compaixão ou solidariedade, e de oração coletiva por aquelas almas.

Há uma expressão no candomblé segundo a qual “o que ori (cabeça) não quer, orixá não pode”. É a visão do humanismo africano, de reconhecimento da potência dos desejos que governam o humano e seu mundo. A indiferença ou falta de contundência da indignação pública, sobretudo de religiosos, a esses extermínios, e de exigência de ações preventivas que impeçam outras ocorrência semelhantes revelam os desejos que orientam a maioria dos oris na sociedade brasileira.

Mãe Nitinha tem razão em não lastimar a perda daquele avião. A foto que melhor convém às guardiãs das tradições religiosas afro-brasileiras é aquela no STF em audiência com seu presidente, ministro Nelson Jobim (em 12/4 último), em que reivindicam o seu apoio para a implementação da Lei 10.639/03, que dispõe sobre a inclusão da história da África e da cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio. Um passo para que oris e orixás possam, um dia, desejarem o mesmo para todos.

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