Estes dias, eu estava participando de um diálogo sobre machismo. Em um dado momento, afirmei categoricamente, e sem me aprofundar, que homens negros não tem privilégios, mas vantagens sociais. Fui indagada depois sobre isso, já que não me aprofundei, e acabei não respondendo porque penso que para explicar o que eu estava afirmando, eram necessárias mais do que meia dúzia de linhas numa rede social.
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Daí que acontece uma situação que eu vejo como um case para esta diferença de conceitos que precisamos começar a trabalhar de modo mais coerente em nossos ativismos e militâncias. Essa semana mesmo, eu tive que alertar uma companheira negra de pele clara que ela não tinha privilégios, mas vantagens no sistema de opressão. Parece pouco, mas isso é importantíssimo porque garante e denota sentido de coletividade e evita que caiamos nas armadilhas racistas do colorismo, por exemplo.
Voltando ao tema, eu poderia estar escrevendo um super textão de apoio e defesa de homens negros em relação ao que duas “rappers” brancas fizeram sobre eles em um vídeo. Mas, diante das complexidades e de como o racismo opera ao ponto de fazer com que muitos homens negros (eu já garanto aqui, ao usar o “muitos”, de que eu sei que “nem todos”, portanto, guarde seu comentário) ataquem e desqualifiquem mulheres negras e muitos outros, quiçá, defenderão aquele vídeo e posicionamentos de conteúdo racista. Por isso, penso que o debate deve ser outro. O de aproveitar determinadas situações para discutirmos estruturalmente, e não como “troco” ou “revenge”, as opressões que vivemos.
Quando Neusa Sousa Santos nos fala sobre o processo de “tornar-se negro”, ou quando Isildinha Nogueira também se utiliza da psicologia e psicanálise para tratar da opressão racial, aprendemos com elas que o racismo afeta não apenas as relações sociais, econômicas, culturais, políticas, institucionais e de gênero, atinge também nossa psiquè. E a atinge ao ponto de conseguirmos constatar um padrão comportamental entre uma maioria de homens negros que ascendem seja culturalmente seja economicamente: de abandonar parceiras negras e passar a se relacionar apenas com brancas. Isto pode ser discutido tanto como os estudos e conceitos de “solidão da mulher negra”.
É a busca, mesmo que inconsciente, e na maioria das vezes o é, de demonstrar publicamente esta ascensão buscando o pólo de positividade em uma sociedade de desigualdades baseadas em hierarquias raciais. Ora, se tudo o que é negativo é negro, logo, a busca de parceria afetiva pública para demonstrar, também, esta ascensão é o relacionamento com mulheres brancas. Isto ocorre mais em relação a homens negros do que em relação a mulheres negras, porque temos aí a intersecção com a opressão machista.
Ou seja, esse seria mais um exemplo e consequência desta “vantagem”, e não privilégio, que o homem negro tem em relação a mulher negra na pirâmide das desigualdades.
Pois bem, e por que, então privilégios são diferentes de vantagens?
Segundo a definição em dicionário, “privilégio” está mais acompanhado de uma denotação “coletiva”. Ou seja, seria a prerrogativa de um grupo em relação a outro; riqueza ou conforto de uma minoria política, étnica, social em detrimento de uma maioria; uma superioridade determinada, amparada ou não por leis que, ainda segundo o dicionário, seria “decorrente da distribuição desigual de poder político e/ou econômico”.
Se formos a raiz etimológica da palavra, “privilégio” vem de privilegium no sentido de excepcionalidade, inclusive garantida em lei, para poucas pessoas. É como se a “graça”, ou a “sorte”, no sentido clássico destas palavras, fosse atribuída a um grupo de escolhidos. Aliás, é dessa ideia toda que há conflito entre os conceitos e ideias de “diferença” e “desigualdades”, papo para outro artigo.
Já “vantagem” aparece, normalmente, com um viés mais individual. Seria o “adiantamento” de um indivíduo em relação a outro; algo que beneficia quem tem a vantagem. A raiz etimológica é francesa, de “avantage”, que significa “estar à frente”.
Se pensarmos estes conceitos de modo sociológico, político, filosófico, antropológico, podemos estabelecer, portanto, estas diferenças importantes para tratarmos de um sistema de desigualdades baseado em hierarquias raciais. Com isso, “privilégio” seria o conceito para o campo sistêmico-estrutural, posto que envolve controle de poder econômico, político, cultural, institucional e uma utilização das diferenças como desigualdades, ao passo que se constrói um nivelamento e relação entre superiores e inferiores nas sociedades.
Já o conceito de “vantagem” seria utilizado para denotar estas vantagens, no interior destas desigualdades e experiências diferentes neste sistema de opressão. Para se aprofundar mais sobre isso, há importante literatura sobre o que se costumou chamar “teoria do privilégio” (Du Bois, 1935; Ignatin; Allen; 1967; Bourdieu, 1989; etc.).
Neste sentido, o vídeo das “rappers” brancas que objetificam e aprofundam os estereótipos que são utilizados para manter em plena e efetiva execução o genocídio da população negra, prioritariamente de homens negros é um case importante, porque retoma que mulheres brancas podem oprimir e que se beneficiam dos privilégios, agora sim!, da branquitude.
Um vídeo que se pretende feminista, se utiliza do racismo para, sem o menor pudor, afirmar “empoderamento” (sic) de mulheres brancas. Angela Davis, em “Mulheres, Raça e Classe”, tem capítulos inteiros em que exemplifica e conceitua como se realizam estas relações e como, com isso, se consolida a pirâmide político-econômico-sócio-racial que, posteriormente, Michelle Alexander chamará, muito bem, de sistema de castas raciais.
Recentes estudos do IPEA explicitaram o sistema de castas raciais em nosso país. Mesmo em períodos de ampla expansão econômica, geração de trabalho, emprego e renda, acesso a bens de consumo, a pirâmide racial não se moveu no país. Homens brancos seguem no topo; seguidos de mulheres brancas; seguidas de homens negros; seguidos de mulheres negras – e é cada vez mais preciso que estudos passem a visibilizar em qual lugar desta pirâmide sócio-racial encontram-se os homens e mulheres indígenas.
Isto, contudo, não significa apagar que homens negros podem e são machistas. Isto não apaga que homens negros seguem com um padrão comportamental que pretere e exclui mulheres negras.
Contudo, homens negros, machistas ou não, seguem não detendo os meios de produção e poder.
Nisso, as estruturas de opressão interseccionadas garantirão o privilégio à branquitude. Homens negros seguem sendo os mais assassinados, como já disse, são o alvo preferencial da violência policial. Por isso que Patricia Hill Collins afirmará que o Feminismo Negro, necessariamente, defende liberdade para mulheres e homens negros, dado que o sentido de luta de liberdade relacionada a liberdade coletiva é um princípio de ser e existir do feminismo negro.
Ou mesmo retomando Angela Davis, ao dizer que nunca se afirmou feminista, que é uma mulher negra revolucionária não porque nega o feminismo, mas porque luta contra estruturas de opressão e por libertação radical nas sociedades – isso, sem antes esquecermos de pontuar que ao fazer esta afirmação, a filósofa faz questão de pontuar que é o feminismo interseccional que tem mais garantido esta visão de construção das diferenças como potências de transformação radical.
Ao feminismo liberal, e necessariamente branco, conforme alerta Davis, cabe reflexão e se enxergar e racializar. Às parcelas consideráveis de homens negros também cabe a reflexão de até que ponto se pode continuar em negação interna contínua, preterimento de mulheres negras sob o argumento de “gosto” como se não fossemos seres políticos e, portanto, condicionados socialmente.
As relações sociais também são políticas.
Não se trata aqui de defender ou não a negação de um padrão comportamental para estabelecer outro. Mas de fazermos reflexões mais profundas das nuances e da profundidade do racismo discriminatório em nosso país. Lutar contra o racismo passa também por nos repensarmos não apenas como sociedade do ponto de vista econômico, político e institucional, mas também cultural, comportamental, psíquico.
Infelizmente, “ a regra é clara”, a matemática explícita e o racismo implacável.
Juliana Borges estuda Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP); foi Secretária-Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (gestão Haddad, 2013); escritora e autora do livro “O que é encarceramento em massa?”da série Feminismos Plurais pelo selo Letramento/Justificando.