Em uma sociedade como a brasileira, caracterizada em não destacar as historicidades negras, relevando-as a uma condição de subalternidade, quando não de apagamento e silenciamento, sempre foi comum tal fenômeno social e cultural, enquanto elemento primordial de modernização civilizatória. O que em outras palavras, significa haver uma lógica – a qual consideramos perversa e equivocada – de associar-se modernidade e desenvolvimento com a negação ou destruição de qualquer resquício, traço ou menção de africanidade, de negritude, em meio aos nossos conjuntos de relações e estruturas sociais.
Para o Brasil ser moderno e civilizado, deve-se ignorar e negar suas origens e manifestações afrodescendentes, suas expressões sociais e culturais de cunho afro. Uma noção racista e discriminatória de nossas elites, que remonta a origem estamental de colonização que define quem é portador de humanidade ou não, de direitos ou não, de acordo com sua pertença e sujeição ao padrão civilizatório cristão (branco) europeu. Modelo preconceituoso de seleção natural-social, que se fez presente por todo nosso período colonial e monárquico, se mantendo atuante e readaptado aos tempos de dinamização social e modernização social representados pela instauração do modelo republicano no Brasil, assim como da plena inserção do país ao universo de capitalismo dependente a partir do final do século XIX.
Em que os modelos de urbanização das principais cidades da nação, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Campinas, iriam experimentar nas primeiras décadas da república, sempre com a remoção das construções físicas e simbólicas que representassem a presença desse conjunto humano aos centros urbanos que se faziam remodelar, que se faziam reconstruir como sinônimos do ingresso brasileiro a modernidade-mundo. Sendo por isso o advento de um grande deslocamento forçado, na maioria das vezes ilegal e sem ressarcimento financeiro ou oferecimento de novas moradias, das populações das hoje denominadas áreas centrais das grandes cidades brasileiras e a ocupação destas nas margens territoriais, nas áreas geográficas mais distantes ou mais precárias, em relação as novas centralidades urbanas e de poder que se faziam edificar através desse modelo de exclusão e segregação urbana de cunho elitista e racista que se faz hegemônico ao longo de nossa história.
Uma situação que se revela mais violenta do que já é, numa sociedade pautada e moldada a partir de um modelo de economia e de poder escravocrata, como Campinas. Cidade centro da economia cafeeira do império e baluarte na defesa das políticas racistas e escravagistas no Brasil, não por acaso sendo apelidada enquanto “Bastilha negra” em alusão aos horrores praticados em relação a população escravizada que habitava a cidade e sua região. O que também nos situa o porquê de Campinas, ser também um centro de constante e histórica série de lutas antirracistas, e de revoltas-rebeliões negras ao longo dos séculos. Uma cidade racial e socialmente tensionada desde seus primeiros tempos de colonização no século XVIII, que se divide e se conflita por estas questões até os dias de hoje, até os tempos atuais. Numa constância das populações negras locais em preservar as suas histórias, suas lutas e conquistas contra um apagamento sistêmico, promovido tanto por órgãos públicos, quanto por entidades particulares, destas memórias e simbolismos, que contam um existir, um outro devir que passa ao largo, para além das páginas oficiais da História, sempre reproduzindo e atestando os pontos de vista e os interesses dos socialmente vencedores.
O que nos Brasil, significa contar e validar narrativas brancas e senhoriais, enquanto hegemônicas, universais e incontestes. Como por exemplo se deu, através da implementação em relação aos planos de remodelação urbanística da região central da cidade, e se descobre que os resquícios da antiga “Igreja do Rosário”, e do cemitério que nela orbitava, não estarem cobertos por nenhuma medida de proteção, que garanta sua preservação devida como memória (i)material histórica da população negra na cidade¹. Revelando-se mais uma etapa de um processo de apagamento, de total e irrestrita exclusão urbana, cultural e populacional das populações negras do centro de Campinas. Uma ação que pode ser contextualizada a partir da própria demolição dessa igreja, na calada da madrugada de 19 de Agosto de 1956, contra a movimentação popular da época, pondo ao chão aquela construção erguida desde 1817, de geração em geração, pelas mãos e esforços das comunidades negras locais. Numa dessas ironias da vida, para dar espaço a expansão da principal avenida da cidade, ao alargamento da antiga rua dos pretos, nomeada oficialmente de Francisco Glicério, em homenagem ao ilustre filho da terra, homem negro, líder político nacional, republicano e abolicionista radical.
Ação de expulsão das presenças negras das regiões centrais da cidade, de suas vivências, hábitos e saberes, que perdurará – de maneira intencional ou não – enquanto efeito prático decisório para a constituição das periferias campineiras, enquanto verdadeiros territórios negros urbanos, como, em especial, os bairros do São Bernardo, intitulado pejorativamente de “Congo” ou “África” pela elite local, e o bairro da Vila Rica, separados geograficamente do centro da cidade e dos bairros nobres, pelo “Córrego do Piçarrão” que separava ao mesmo tempo, como uma fronteira natural e social, a “cidade oficial” e “branca”, da “não cidade”, da “terra dos pretos” abandonada a própria sorte.
Lógica urbanística que moldaria, e ainda delimita, a constituição das periferias contemporâneas de Campinas, regiões do Ouro Verde/Vida Nova e Campo Grande. Como se essas regiões fossem locais de não cidadãos, por isso desprovidos, ou não “merecedores”, do acesso aos direitos sociais mais básicos. Exclusões urbanas e cidadãs, que ainda podem ser reconhecidas através de como as historicidades negras, através de suas experiências e vivências urbanas, são tratadas como desprovidas de qualquer valor ou significado positivos. Pois caso em contrário, não estaria sendo necessário um pedido de tombamento dos resquícios da Igreja do Rosário e do cemitério, como sítio arqueológico, junto ao CONDEPACC, ao CONDEPHAAT e ao IPHAM, além de notificação oficial ao prefeito da cidade, Dário Saadi (Republicanos), sobre os possíveis efeitos das obras, por parte do gabinete da vereadora Guida Calixto (Partido dos Trabalhadores), em atuação conjunta ao professor Pedro Tourinho e ao arquiteto e urbanista Luiz Antônio Martins Aquino, assim como da articulação e movimento das entidades negras e atores político-sociais afro-campinenses, para denunciar e se opor a essa situação. Reivindicando a preservação desta parte tão fundamental da história da cidade! Em oposição a uma sanha que parece nunca se saciar em buscar eliminar, apagar a aqueles que não considera aptos a serem considerados como filhos seus, merecedores de seus afagos, virtudes e proteção. Não por acaso, uma realidade muito semelhante em seus modos operandos ao que ocorre em relação a preservação do “Cais do Valongo” na cidade do Rio de Janeiro e dos resquícios de um quilombo, encontrados abaixo da antiga sede da escola de samba “Vai-Vai” na cidade de São Paulo.
Sempre com uma desculpa formal, oficial, de que tais processos de destruição se dão não por esse sentido e nem com essa intenção, mas como resultantes de uma implementação modernizante para melhora de vida da população em geral, como um todo. O que resvala na tática das defesas exercidas pelas comunidades negras, sempre serem interpretadas e repassadas para a sociedade em geral, como ações de um grupo em específico, que só pensa em seu interesse próprio e nunca no coletivo. Como que quisesse “aparecer” pelo interesse de se autopromover e não enquanto continuidade de processos de resistências, por vezes seculares, de contramanifestações diárias e constantes ante ao nosso racismo estrutural. Tal qual o que hoje ocorre em Campinas, relacionado com o risco de destruição do pouco que resta da memória da “Igreja do Rosário” na cidade de Campinas.
O que em tempos de agora, em que se faz comum, até como bandeira política, o combate ao racismo e da necessidade de ser na prática antirracista, ainda mais num país em que os casos de racismo e manifestações de discriminação racial se multiplicam nos noticiários das mais diferentes mídias, nos parece no mínimo contraditório uma situação como essa de mais uma modernização urbana na cidade em que não se leva em consideração, em que não se respeita, as histórias, os destinos erguidos daqueles que, literalmente, sustentaram e deram base aos potenciais destinos de uma sociedade que teima em não lhes reconhecer como seus. Como aqueles que mais suaram sangue e alma, para a sua construção simbólica de cidade moderna e inovadora. Embora, por outro lado, tal incapacidade de reconhecimento, na verdade não nos possa parecer tão surpreendente assim, no sentido de refletir uma prática gestora e discriminatória, de cunho racista, acerca de uma sociedade que louva seus tempos passados, das fazendas de café, dos barões que aqui viviam e desfilavam, com seus hábitos e costumes de tempos outros, mais elegantes e felizes. E não precisa ser um perito em história, para saber a quem essa narrativa abrange e a quem ela exclui. A quem ela representa e simboliza e a quem ela não representa e não simboliza.
O processo de destruição das historicidades contidas nos restos da “Igreja do Rosário” ao qual pode se dar em qualquer momento, ocorre inserido a essa lógica excludente que perpassa os conjuntos das relações sociais, desde as informais como as institucionalizadas, na cidade de Campinas, mesmo em pleno século XXI.
Passado maldito que parece não querer nos abandonar! Um racismo tão entranhado as vísceras da sociedade campinense, que não deixa em paz nem os poucos resquícios daquilo que já se encontra á décadas, soterrado e escondido. Longe de qualquer facho de luz, já no subterrâneo da História. Nem a isso para ser permitido existir, na última cidade a abolir a escravatura, do último país do mundo a pôr fim a escravidão em suas terras. Será essa situação em Campinas, como um reflexo de uma eterna sina que parece não querer nos abandonar?
Que a proteção de nossos ancestrais nos protejam desse mal! E que seu passado, que suas histórias não nos sejam mais renegadas e muito menos apagadas! Sendo s preservação dos restos da “Igreja do Rosário” e seus arredores, o primeiro passo nessa nova direção!
Axé!
¹ Sendo que os resquícios arqueológicos foram escavados em 2015 e até agora não foi elaborada nenhuma política de preservação em relação a eles. Mas em compensação define-se processo de reforma urbana que possa resultar na sua destruição. Para além da confirmação de um país que pouco preserva da sua história, temos aqui um agravante de uma sociedade que não nutre nenhum zelo ou apreço pelas existências e historicidades de suas populações negras (COSTA, 2015; STEGANHA, 2015).
Fontes:
COSTA, Maria Teresa. Escavações encontram ossos em ex-cemitério na Glicério. (25/06/2015). In: //correio.rac.com.br/campinasermc/escavac-es-encontram-ossos-em-ex-cemiterio-na-glicerio-1.1225791, acessado em 17/04/2023.
STEGANHA, Roberta. Escavações revelam parte da antiga Igreja do Rosário em Campinas, SP. (30/06/2015). In: //g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/06/escavações-revelam-parte-da-antiga-igreja-do-rosario-em-campinas-sp.html, acessado em 16/04/2023.
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.
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