O STF e as abordagens policiais racistas

Corte precisa enfrentar estigmatização que atinge cidadãos em todo o país

Supremo Tribunal Federal deverá retomar nesta quarta-feira (8) julgamento de habeas corpus proposto pela Defensoria Pública de São Paulo em que se examina tese de nulidade de prova decorrente de abordagem policial motivada por critério racial.

O caso é revelador dos processos de estigmatização que atingem cidadãos negros nas distintas fases da persecução penal. No inquérito, a polícia relata que “avistou ao longe um indivíduo de cor negra, que estava em cena típica de tráfico de drogas, uma vez que ele estava em pé junto o meio-fio da via pública e um veículo estava parado junto a ele como se estivesse vendendo/comprando algo”. Após apreensão de 1,53 grama de cocaína, o cidadão admite ser usuário, mas é denunciado por tráfico e condenado a 7 anos, 11 meses e 8 dias de reclusão.

A discussão sobre a ilicitude da prova tem início no Superior Tribunal de Justiça, em voto do ministro Sebastião Reis pela nulidade da busca em razão de a suspeita policial ter sido baseada na cor da pele: “Não se pode ter como elemento ensejador da fundada suspeita a convicção do agente policial despertada a partir da cor da pele, como descrito no auto de prisão em flagrante constante dos autos, sob o risco de ratificação de condutas tirânicas violadoras de direitos e garantias individuais, a configurar tanto o abuso de poder quanto o racismo“. A tese foi vencida, mas a pena reduzida para 2 anos e 11 meses.

O Supremo terá a oportunidade de enfrentar o tema, criando precedente importante de controle judicial da atividade policial. Na primeira sessão do julgamento, o ministro relator Edson Fachin votou pela nulidade da apreensão policial, pois motivada por estereótipos raciais. Os ministros André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli não viram prova de perfilamento racial no caso, mas deixaram porta aberta para debate sobre diretrizes judiciais voltadas a coibir abordagem policial discriminatória. Representante da Procuradoria-Geral da República qualificou o problema como “sociológico”.

Advogados e advogadas de organizações da sociedade civil sustentaram oralmente para destacar a dimensão coletiva do caso, que evidencia padrão de atuação discriminatória das várias instituições penais. Pesquisa do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e do Data Labe, com mais de mil entrevistados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, indica padrões abusivos de vigilância policial sobre pessoas negras, com risco 4,5 vezes maior de serem abordadas. A pesquisa “Por que eu?” indica que 46% dos negros e 7% dos brancos ouviram referência a raça/cor durante a abordagem. Essas práticas estigmatizantes resultam em sobrerrepresentação da população negra nas prisões, tendência que se acentua em razão de condenações por tráfico.

A anulação judicial de prova obtida por método ilícito constitui relevante mecanismo de controle da polícia. No processo penal, o fim não deve justificar o meio; é necessário haver limites claros nos procedimentos de investigação e punição de crimes. Sem freios à atuação do sistema penal, desaparece a fronteira entre crime e combate ao crime, prevalecendo a tirania.

A Constituição de 1988, entre outros marcos normativos que conformaram a rejeição ao racismo, somada a ações afirmativas, produziu tensões e conquistas a partir do ativismo permanente da população negra. O STF, que tem respondido positivamente a várias dessas demandas, terá o desafio de definir critérios objetivos para o conceito de “fundada suspeita” (art. 244, Código de Processo Penal), utilizado para fundamentar buscas policiais sem mandado judicial, e incidir, assim, em prática central de reprodução do racismo.

Por fim, esse julgamento deve lembrar que o enfrentamento do racismo estrutural passa pela diversidade na composição do sistema de Justiça. Foi sintomática a referida sessão de julgamento na qual advogadas negras e advogados negros denunciavam da tribuna o racismo nas práticas policiais em uma corte integrada por nove ministros brancos e duas ministras brancas.

O governo e o Congresso Nacional devem mostrar seu compromisso com a democracia, considerando gênero e raça como critérios tão relevantes quanto idoneidade e saber jurídico para indicação e aprovação de integrantes do STF e do STJ.


Sueli Carneiro

Filósofa, é coordenadora-executiva do Geledés – Instituto da Mulher Negra e conselheira da Conectas Direitos Humanos

Theo Dias

Advogado criminal, é presidente do conselho deliberativo da Conectas Direitos Humanos

Gabriel Sampaio

Advogado, é diretor de litigância e incidência da Conectas Direitos Humanos

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