O topo é uma corda bamba: não estamos emocionalmente preparados para o sucesso

Entre milhões de conquistas e rompimentos afetivos, sair da pobreza e ganhar dinheiro em um Brasil que reforça emocionalmente a herança da escassez não nos coloca no topo, mas sim em uma corda bamba.

Não é de hoje que empresas de “sucesso”, criadas e geridas por pessoas historicamente vulnerabilizadas — pretas, periféricas, LGBTQIAP+ e mulheres — enfrentam abalos estruturais ao ascender economicamente. A diferença, em relação à maioria dos empreendimentos tradicionais com herança familiar, é que, quando essas empresas decretam falência, suas questões vão além da administração financeira; elas tocam camadas sociológicas profundas e refletem um culto à escassez.

Muitas das lideranças desses negócios carregam uma mentalidade de “salvação”, alimentada por uma perspectiva meritocrática introjetada no inconsciente coletivo. Esse pensamento as leva a reproduzir o que acreditam ser o “ideal de sucesso”: consumir de forma desenfreada tudo aquilo que antes não podiam ter e exercer poder sobre outras pessoas, como se esses atos fossem uma espécie de compensação pelos anos de sofrimento.

Imagem enviada para o Portal Geledés por Ciça Pereira

É essencial destacar que essa perspectiva não se trata de uma questão individual de caráter, tampouco de uma dicotomia entre bem e mal. Pelo contrário, ela reflete um arquétipo cruel, profundamente enraizado na construção sociológica brasileira desde o período escravocrata. Poucos conseguem se emancipar emocionalmente dessas amarras a ponto de se enxergarem como agentes de transformação coletiva, em vez de apenas perpetuadores de exploração.

O trauma psicossocial da exploração

A história do mercado de trabalho no Brasil e no mundo está atravessada por um trauma psicossocial: séculos de escravização, estratificação e exploração de pessoas. Não à toa, ainda hoje vemos trabalhadores sendo tratados como se fossem escravizados, e a divisão de classes continua reforçando novas formas de exploração da mão de obra.

Esse trauma não apenas determinou hierarquias de poder, mas se transformou em uma cultura introjetada no inconsciente coletivo brasileiro. Nela, “tratar mal” trabalhadores considerados inferiores, exigir servidão exacerbada e associar abusos a relações naturais de poder tornaram-se comportamentos normatizados. Essa lógica atravessa toda a estrutura social e se manifesta sempre que existe uma relação hierárquica — formal ou simbólica.

O problema é que, mesmo tendo sofrido esse tipo de opressão em algum momento da vida, muitas pessoas que ascendem financeiramente acabam reproduzindo os mesmos padrões. E isso não acontece apenas por ego, mas por um mecanismo subconsciente: o culto à escassez.

O culto à escassez e a repetição dos ciclos de violência

A insegurança financeira, a falta de gestão adequada de pessoas e recursos, o sucateamento da remuneração da equipe e até os abusos morais e psicológicos nas relações de trabalho não são apenas sintomas individuais. São reflexos de uma mentalidade de escassez, que associa prosperidade ao desejo de ser bajulado, reconhecido e de exercer poder sobre os outros — exatamente como os líderes tradicionais fazem. É a profecia de Paulo Freire se concretizando: o medo de que o oprimido se torne opressor.

Nesse contexto, o medo de voltar ao passado e os traumas da pobreza transformam-se em mestres invisíveis, guiando decisões impulsivas. Muitos, antes explorados, sentem-se no direito de explorar. E, assim, caem nas armadilhas do capitalismo, onde o consumo desenfreado tenta suprir lacunas emocionais e a desorganização interna se torna o verdadeiro algoz dos seus negócios.

Além disso, surge uma síndrome persecutória que mina a construção coletiva. A dificuldade de reconhecer o valor dos colaboradores dá lugar a paranoias, onde se acredita que “todos querem tomar seu lugar” ou são responsáveis pelos possíveis fracassos. Isso faz com que muitos negócios se tornem datados e apenas réplicas falidas de um modelo de sucesso neoliberal que, no fundo, nunca nos pertenceu.


Ciça Pereira é uma jovem incomodada com o mundo que vê na arte, na música e na cultura um mecanismo de transformação social. Empresária e gestora cultural, é CEO da Zeferina Produções e da plataforma de soluções para equidade racial no mercado de trabalho, a comunidade Afrotrampos


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