O uso da palavra ‘genocídio’ no combate ao racismo estrutural

Este texto foi escrito a quatro mãos. Duas negras, duas brancas. Escolha que se deu para que possamos praticar um dos nossos principais argumentos: de que o racismo, assim como a luta antirracista, não deve mobilizar apenas negros e negras, mas também brancos e brancas. Representatividade é fundamental, mas não é o suficiente. Se entendemos o racismo como um fenômeno estrutural, nos parece coerente remexer a própria estrutura na hora de escrever e pensar sobre ele. Então, vamos aos fatos.

O fato de que pessoas negras são vítimas de um genocídio constante não deveria nem ser discutido. O debate, aliás, só revela a resistência que uma sociedade moldada pela discriminação contra corpos de negros tem de se assumir racista. Como não chamar de genocídio uma sucessão de violências que sempre estouram no seio de famílias pretas?

Não há refresco. Nem em tempos de pandemia e de uma suposta onda de solidariedade. Miguel, João Pedro e Guilherme, todos negros, foram mortos ao mesmo tempo que o coronavírus atingiu em cheio afrodescendentes como eles. Vamos aos números.

Mortes naturais subiram três vezes mais entre negros durante a pandemia provocada pelo novo coronavírus. O mesmo fenômeno não foi registrado entre pessoas brancas. Isso, meu caro e minha cara leitora, é nada mais do que um efeito do racismo. Racismo que estrutura, mas não se engane, também se manifesta sem pedir licença.

Famílias negras brasileiras, em linhas gerais, estão confinadas em bairros periféricos e que carecem de tudo. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que mais de 40 milhões de brasileiros não acessam água tratada e outros 100 milhões não são atendidos pelos serviços de coleta de esgoto. Violências inadmissíveis, mas que dão o tom da desigualdade galopante da terra brasilis. Sabe quem é mais afetado? Os negros, que representam apenas 54,5% das casas com serviços de abastecimento de água, esgotamento e coleta de lixo. Brancos respondem por 72,1% dos beneficiados.

Os números explicam porque negras e negros estão morrendo mais em meio à pandemia. A precarização da existência preta é uma realidade, quer dizer, é um plano desde que o primeiro navio com homens, mulheres e crianças escravizados e arrancados de África ancorou na costa do Brasil.

Descolonizar o “genocídio” é preciso

Se queremos defender o uso da palavra “genocídio” para relatar a morte de pessoas negras, é importante primeiro investigar suas origens, sua história e suas definições. O termo foi utilizado pela primeira vez pelo jurista polonês, de descendência judaica, Raphäel Lemkin em 1944, na obra “Axis Rule in Occupied Europe”. A denominação descreve o extermínio em massa de indivíduos que se identificam por uma determinada etnia ou raça.

A palavra surge a partir da combinação do grego génos, entendido como raça, com raiz no indo-europeu “gene” (gen- / gne- ‘nascer, gerar’, pelo fr. gène ‘id.), que significa dar à luz ou gerar, e o sufixo -cidio, visto no latim como -cidium, associado ao verbo caedĕre, que se refere à ação de matar ou cortar, com referência no indo-europeu *kae-id-, no que diz respeito a cortar.

Hannah Arendt, uma das principais pensadoras políticas do século 20, é também uma das maiores referências no debate sobre o totalitarismo. Judia, nascida na Alemanha, Arendt vivenciou na pele os horrores da perseguição nazista. Foi essa realidade – que atravessou a vida da filósofa e tornou-se objeto de suas lutas, pesquisas e reflexões – que serviu de motivação para a criação do conceito de “genocídio”, criado por Raphäel Lemkin.

Judeus chegam a Auschwitz, na Alemanha (Foto: Wikimedia Commons)

Em “As Origens do Totalitarismo”, publicado em 1951, Arendt situa as raízes profundas do racismo – que teria emergido simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século 19 – no século 18, mais especificamente entre teóricos pertencentes à nobreza francesa. O grupo esforçava-se então para conter os impulsos revolucionários burgueses, que se alastraram não só pelas ruas, mas também pela produção intelectual da época.

A definição de racismo criada pela autora foi um ponto de guinada para as análises sociopolíticas gestadas a partir de então em nível global. Ela descreve o racismo como sendo uma ideologia, isto é: “um sistema baseado numa única opinião, suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientá-las nas experiências e situações da vida moderna. Pois a ideologia difere da simples opinião na medida em que se pretende detentora da chave da história”. (ARENDT, p. 234, 2012)

Pintura de meados de 1800 intitulada ‘Am Not I A Man and a Brother’ (Foto: Wikimedia Commons)

Esta definição reforça ainda mais a importância do racismo na legitimação do violento processo de conquista e exploração das Américas, que permitiu o fluxo e o acúmulo de riquezas, fundamentais para o surgimento e o desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, o racismo está na base estrutural do capitalismo, pois a escravidão e a colonização – que financiaram sua existência enquanto projeto de poder – só foram possíveis pela existência de uma “opinião, suficientemente forte e bastante ampla”. Essa opinião era a de que índios e negros não eram humanos, ou eram sub humanos, e, por isso, eram passíveis da exploração, do trabalho não remunerado, da posse, do roubo, dos estupros e do extermínio.

Lemking desenvolveu o conceito de genocídio em parte devido ao Holocausto, mas também devido a fatos históricos anteriores, em que considerou que nações inteiras, grupos étnicos e religiosos foram aniquilados. Alguns exemplos foram a chamada “destruição de Cartago”, o extermínio de grupos religiosos nas guerras entre o Islão e as Cruzadas, os massacres dos albigenses e valdenses, e, mais recentemente, o massacre dos armênios, todos conflitos ocorridos no hemisfério norte, nenhum deles envolvendo o massacre de indígenas ou negros.

Chamamos a atenção para este fato, não para desmerecer a criação do termo genocídio, nem, muito menos, para deslegitimar a luta e as contribuições de Lemking contra os horrores do nazismo. Pelo contrário. Nosso objetivo aqui é ressaltar a importância de amplificar sua aplicação, tanto em termos espaciais, quanto temporais, étnicos e raciais. Se a nomeação e a criminalização deste tipo de prática foi tão importante para a erradicação das ideias nazistas e fascistas, ela é igualmente importante para a crítica e o desmonte do imaginário racista que ainda hoje permanece em estruturas sociais e intelectuais, sustentando violências e desigualdades pelo mundo todo.

A violência para reafirmar a superioridade

O arsenal de violências provocadas pelo racismo é vasto e inclui a polícia militar. Se você é um homem negro, tem até 29 anos e mora em alguma periferia do Brasil, sua chances de ser assassinado são quase 3 vezes maiores do que um rapaz branco com as mesmas características.

A campanha Jovem Negro Vivo, criada pela Anistia Internacional para expor o genocídio em curso contra a população negra, apresenta números impactantes, mas que não surpreendem quem nasceu com a pele preta. Em 2012 – segundo a entidade que atua também na exigência por Justiça e punição aos autores e mandantes do assassinato da vereadora Marielle Franco – 56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, sendo que 77% dos 30 mil jovens entre 15 e 29 anos mortos eram negros. Nem 8% dos casos foram julgados. Um spoiler: nada mudou em quase 10 anos.

O Atlas da Violência reforça a lógica de que o negro é o alvo da bala que sai do braço armado do Estado. Cerca de 75% das vítimas de homicídio no Brasil em 2017 foram negras. A taxa de homicídios de negros por grupo de 100 mil habitantes foi de 43,1, enquanto entre não negros (brancos, amarelos e indígenas), atingiu os 16,0. O mesmo Atlas da Violência aponta que em 10 anos, a taxa de homicídios entre negros aumentou 23.1%. Não negros enfrentaram redução de 6,8% no mesmo período.

Trocando em miúdos, a violência contra o negro é institucionalizada desde os tempos da escravidão, que ainda hoje é retratada como algo menor do que realmente foi. Isso se dá, em grande medida, pelo maniqueísmo da representatividade.

Imagem: Johann Moritz Rugendas (Foto: Wikimedia Commons)

O Brasil foi o último país da América Latina a abolir oficialmente a escravidão em 13 de maio de 1888. Anos antes, em 1850, precisamente, o país aboliu o tráfico Atlântico de pessoas em condição de escravizadas com a Lei Eusébio de Queirós. Para se ter ideia dos efeitos desse crime contra a humanidade, dos 8 ou 11 milhões de africanos trazidos para o continente americano em três séculos, 4,9 milhões chegaram ao Brasil. Não existem números precisos, mas estima-se que pelo menos 670 mil pessoas morreram no meio do caminho e foram lançadas ao mar. Nestes três séculos, os navios portugueses ou brasileiros fizeram mais de 11 mil viagens e 9 mil delas terminaram no nosso país.

Os movimento hegemônicos e a falácia da superioridade branca em relação aos negros se dá no contexto de uma história, que como podemos ver, começou há séculos atrás. E persiste. O já citado simbolismo é gritante na imagem de um policial fardado pisando com o joelho no pescoço de uma mulher negra de 51 anos. Poderia ser a minha mãe. A sua. A imagem escandalosa não parece suficiente para demover uma sociedade totalmente cega pelo racismo.

O que diz o direito internacional?

A codificação do termo “genocídio” enquanto crime independente sob o direito internacional, aconteceu somente em 1948, na Convenção de Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (mais conhecida como Convenção sobre Genocídio). Apesar disso, anteriormente, a expressão chegou a ser utilizada nos famosos Julgamentos de Nuremberg, após o final da Segunda Guerra. Referiram-se então ao “genocídio” no contexto de crimes contra a humanidade, particularmente em relação aos crimes de perseguição e homicídio. A essa altura, o genocídio ainda não era um crime separado na Carta do Tribunal Militar Internacional (Carta de Nuremberg), e era ainda utilizado como um termo descritivo sem especificações legais.

Após a Convenção sobre Genocídio, em 1948, isso mudou. De acordo com o Artigo 1º da Convenção, “As Partes confirmam o genocídio, seja este cometido durante tempo de paz ou guerra, um crime sob o direito internacional, ao qual se comprometem a prevenir e reprimir”. A Convenção entrou em vigor a 12 de janeiro de 1951.

A partir daí, a utilização do termo “genocídio” passou a ser precisa do ponto de vista legal e inclui um elemento que é muitas vezes difícil de provar, o elemento de “intenção”. “A determinação de quando uma situação constitui genocídio é factualmente e legalmente complexa e só deve ser feita tendo em conta uma análise rigorosa dos factos com base na legislação”, segundo a ONU.

Até hoje, apenas alguns eventos pontuais foram classificados pelos órgãos judiciais competentes como “genocídio”. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, determinou o assassínio dos Tutsis, em 1994, como genocídio. Já o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia, classificou os eventos de 1995 em Srebrenica (Bósnia e Herzegovina) como genocídio. O Tribunal Penal de Justiça também acusou indivíduos, em outras instâncias, deste tipo de crime, mas os julgamentos ou decisões finais ainda estão pendentes.

Escolhas semânticas são posicionamentos políticos

Mas apesar do direito internacional, que é sim muito importante, entendemos que, acima de tudo, as escolhas das palavras na hora de reportar notícias, em especial notícias sobre casos de violência contra grupos e populações desfavorecidas, são escolhas políticas. “Quando a gente vai discutir genocídio da população negra, o número assassinatos de negros e negras, o termo tem uma força política de trazer a discussão. Muitas vezes parece que estamos discutindo apenas o ato de matar e, na verdade, o genocídio não é pontual nem fatídico, faz parte de um processo histórico, de uma política de conjunto, do racismo estrutural”, explica Joelson Souza, membro da ANPG (Associação Nacional de Pós Graduandos), mestrando em saúde pública pela Fiocruz e organizador do livro “Questão negra: a luta pela consciência negra e o combate pela revolução”.

O feminicídio nos ensinou muito sobre isso nos últimos anos, inclusive. Não só a tipificação do feminicídio como “o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino”, mas também a ampla adoção do termo pela imprensa foram fundamentais na disseminação do debate e da conscientização acerca das desigualdades de gênero e no combate à violência contra a mulher.

Os entraves jurídicos relacionados à dificuldade de comprovação das motivações raciais por trás das mortes violentas no Brasil afastam a possibilidade da tipificação deste tipo de crime pelo código penal brasileiro. Mas isso não impede que a imprensa “dê nome aos bois” e incorpore o uso do termo “genocídio” ao se referir às mortes de pessoas negras, assim como fez com o termo “racismo”. Há menos de uma década, a palavra “racismo” era considerada tabu e quase não aparecia em manchetes e textos jornalísticos. Não é preciso dizer que esse cenário mudou consideravelmente nos últimos anos.

Homenagem do artista Pedro Magalhães a Claudia Silva Ferreira, morta por uma operação da Polícia Militar do Rio de Janeiro, baleada e, em seguida, arrastada por volta de 300 metros por uma viatura (Foto: Pedro Magalhães)

O resultado dessa mudança é que o debate foi amplificado de forma sem precedentes. Usar a palavra “racismo” é assumir a existência do racismo, o que lembra, a cada parágrafo e a cada manchete, da importância de combatê-lo. Usar a palavra “genocídio” para tratar da morte de pessoas negras é, portanto, fundamental para lembrar que essas mortes são sistemáticas e que a mortalidade atinge de forma muito mais impactante a população negra.Joelson Souza alerta ainda para o fato de que a luta contra o genocídio de pessoas negras vai muito além das mortes em si. “O fim do genocídio da população negra passa por combater desde a exclusão pós abolição, que privou negros e negras do acesso aos serviços sociais, como saúde, moradia e educação, e o próprio direito de se organizar. Hoje por exemplo, a gente vê as religiões de matriz africana em diversas cidades sofrendo ataques físicos de depredação, etc…”.

Covid-19 e as mortes na pandemia: não estamos no mesmo barco
A pandemia do novo coronavírus revelou uma série de frases de efeitos e pensamentos generalistas e que negam as individualidades. Você, certamente, já ouviu dizer por aí que estamos no mesmo barco. Não estamos. Sobretudo, se você for negro e pobre. Nos Estados Unidos, onde afro-americanos respondem por cerca de 13% da população, a Covid-19 demonstrou como a discriminação, que equilibra o sistema de saúde do país mais rico do mundo, não dá aos negros sequer a chance de lutar pela vida contra o vírus.

A quase ausência de escolha de pessoas que não podem contar com o privilégio de cumprir o isolamento social, não pode ser entendida como um fenômeno isolado. O racismo é um plano bem executado. A falta de interseccionalidade de dados e de um debate que coloque a raça como um fator decisivo, contribuem para que tudo permaneça como está.

“Eu moro em Austin, no Texas, e uma das fontes locais de notícia publicou um estudo feito pela UT School of Public Health mostrando os bairros mais atingidos pela Covid-19. Eles, no entanto, não mencionam que estas áreas são povoadas por uma maioria de negros e mestiços. A matéria não trata do plano diretor de Austin de 1928, que criou bairros específicos para negros e latinos, legalizando a segregação racial, o que mudou diretamente o panorama de raça atual. Embora o leste da cidade tenha vivenciado o aumento de moradores brancos, o mesmo não acontece na parte oeste, que segue um exclusivamente branca e, em contraste, com muito mais acesso à saúde e menos doenças crônicas. O povo negro está cada vez mais sendo empurrado para as margens da cidade – com menos infraestrutura de saúde, diversão e comida saudável”, relata Chelsi West Ohueri, especialista em antropologia da medicina e estudante de questões raciais na área da saúde.

A coisa não muda. Aliás, piora quando a realidade é transportada para o Brasil. Em São Paulo, cidade mais rica do país, bairros com pretos e pardas registram o maior número de mortes pela Covid-19 da capital paulista. Sapopemba (zona leste) e Brasilândia (zona norte), reportaram 300 e 277 mortes até 24 de junho, respectivamente. Na contramão, regiões com predominância branca, caso da Bela Vista, Santa Cecília e Alto de Pinheiros, tiveram poucos casos e mortes pela doença.

Vimos que a codificação do termo “genocídio” enquanto crime independente, sob o direito internacional, é complexa por demandar a comprovação do elemento de “intenção”. No contexto da pandemia do novo coronavírus, especificamente no caso do Brasil, as desigualdades sociais já instituídas se agravaram ainda mais, resultando em estatísticas, apesar de escassas, também desiguais do ponto de vista de classe, mas principalmente de raça.

“Acho importante nessa época da Covid-19 não só trazer a questão da banalização das mortes, mas também fazer a discussão de que eram mortes evitáveis. Isso é uma questão também interessante de colocar na discussão, porque em geral a palavra genocídio vem vinculada a algum responsável por ele”, lembra Joelson.

O feminismo negro ensina: interseccionalizar é fundamental

De acordo com dados publicados pelo Ministério da Saúde em abril, pretos e pardos representavam quase 1 em cada 4 brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,1%) e chegaram a 1 em cada 3 entre os mortos por Covid-19 (32,8%), em maio de 2020. Apesar dos dados mostrarem que negros tiveram maior aumento de óbitos e registram mais mortes entre hospitalizados, o Governo Federal não divulgou em detalhes estas informações. A agência chama a atenção para o fato de que não há, por exemplo, a informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor ou o número de testes em negros, brancos e outros grupos.

Pesquisadoras importantes dos estudos de gênero como Angela Davis e Kimberlé Crenshaw já nos alertam há tempos para a importância de interseccionalizar as violências e desigualdades sofridas por mulheres de diferentes raças e classes. O conceito de interseccionalidade surgiu a partir de círculos sociológicos no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 em conjunto com o movimento feminista multirracial. Liderado por mulheres negras, o movimento contestou a ideia de que as mulheres eram uma categoria homogênea essencialmente compartilhando as mesmas experiências de vida. Apontaram o sexismo entre a própria comunidade negra, mas, principalmente, o racismo dentro do movimento feminista.

Em 1969, Angela Davis foi demitida do cargo de professora de filosofia da Universidade da California por sua associação com o partido comunista americano e com os Panteras Negras. A filósofa viria a ser perseguida, colocada na lista dos 10 criminosos mais perigosos do país, condenada e presa sem provas e com altas doses de espetacularização. (Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo)

“(Angela Davis) … nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo”, ressalta a filósofa e ativista Djamila Ribeiro no prefácio de “Mulheres, Raça e Classe”, da filósofa e ativista Angela Davis. No livro, Davis alerta para o que chama de risco triplo, que torna as mulheres negras e pobres triplamente vulneráveis, por serem mulheres, por serem pobres e por serem negras.

A ideia de interseccionalidade evita fenômenos como o da ‘superinclusão’, descrito por Kimberlé Crenshaw – professora na Faculdade de Direito da UCLA e na Columbia Law School, fundadora do Centro de Interseccionalidade e Estudos de Política Social da Columbia Law School (CISPS), do Fórum de Política Afro-Americano (AAPF), e presidente do Centro de Justiça Interseccional (CIJ), com sede em Berlim. A pesquisadora alerta para a importância de trazer a perspectiva de gênero para as análises e aponta a necessidade de ressaltar a indispensável intersecção entre raça, classe e sexualidade, essencial para entender de que forma cada grupo vivencia a discriminação.

Ou seja, é preciso interseccionalizar as estatísticas e é preciso interseccionalizar também os discursos, sejam eles políticos, jornalísticos ou cotidianos, para evitar o risco da ‘superinclusão’. Segundo Crenshaw, o fenômeno “ocorre na medida em que os aspectos que tornam um problema interseccional são absorvidos […] sem qualquer tentativa de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter exercido em tal circunstância” (CRENSHAW, 2002, p. 173-174)

Não somos (só) nós que estamos dizendo

São muitos os estudos no campo da linguística que apontam a força e a importância das escolhas semântica nas construções textuais, em especial as que circulam na imprensa. Portanto, para reforçar a importância de incorporar o uso da palavra “genocídio” ao reportar a morte de pessoas negras, passamos a palavra aos especialistas.

Jorge Larrosa Bondía, professor da Universidade de Barcelona com pós-doutorado no Instituto da Educação na Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault, da Sorbonne, em Paris, diz:

“As palavras determinam nosso pensamento porque não pensamos com pensamentos, mas com palavras […]. E, portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos” (BONDÍA, 2002, p. 21).

Patrick Charaudeau, linguista francês, fundador da Teoria Semiolinguística, e uma das maiores referências mundiais em Análise do Discurso alerta para o fato de que:

“Mortos são mortos, mas para que signifiquem ‘genocídio’[…], é preciso que se insiram em discursos de inteligibilidade do mundo que apontam para sistemas de valores que caracterizam os grupos sociais. Ou seja, para que o acontecimento exista é necessário nomeá-lo.” (CHARAUDEAU, 2018, p. 131).

Uma das maiores referências no estudo da linguagem humana, o filósofo e pensador russo Mikhail Bakhtin inspirou trabalhos de estudiosos em um número de diferentes tradições, do marxismo à semiótica, passando pelo estruturalismo até a crítica religiosa, resultando em contribuições em disciplinas tão diversas como crítica literária, história, filosofia, antropologia e psicologia. Para Bakhtin:

“A palavra funciona como elemento essencial que acompanha toda criação ideológica, seja ela qual for” (BAKHTIN, p. 38, 2014).

“A palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, p. 36, 2014).

Já o linguista holandês Teun A. van Dijk (2017), uma das principais figuras da Análise Crítica do Discurso, propõe uma abordagem que leva em conta a relação entre cognição, discurso e sociedade. Suas pesquisas mais conhecidas centram-se em questões como racismo, ideologia, conhecimento, contexto e processamento discursivo. O autor afirma que:

“Há pouca dúvida de que a maioria de nossas ideologias são formadas discursivamente” (DIJK, 2017, p. 33).

Olhar para as matérias jornalísticas sobre mortes de pessoas negras sob a ótica dos Estudos Críticos do Discurso é, portanto, olhar não para quaisquer relações de poder presentes no processo de construção da notícia, mas para as relações que envolvem abusos de poder, ou seja, para as “formas de dominação que resultam em desigualdade e injustiças sociais” (DIJK, 2017, p. 10).

O holandês alerta ainda para o fato de que, mesmo que não bastem todas as questões relacionadas aos direitos humanos, o racismo e o sexismo, no limite, são prejudiciais do ponto de vista econômico.

“Devíamos argumentar e mostrar que o discurso racista ou sexista é ruim para os negócios […]. Se esses cidadão (não-brancos) têm uma escolha entre um jornal ou programa de televisão, escola ou firma racista e um não racista , podemos imaginar o que a maioria deles escolherá…” (DIJK, 2017, p. 36).

Saindo um pouco do campo da linguística e mergulhando nos estudos da comunicação, mais especificamente do jornalismo, temos Jean Charron e Jean de Bonville, autores do livro “Natureza e Transformação do Jornalismo”. Traduzido e publicado em português, a obra é uma das mais importantes contribuições para os estudos de jornalismo na época contemporânea. No jornalismo de comunicação (era do jornalismo que, segundo os autores, vivenciamos atualmente):

“Os discursos midiáticos tem tanta pregnância que o discurso dos atores sociais se encontra subordinado a eles” (CHARRON, p. 222, 2016). Diferente das eras anteriores (jornalismo de transmissão e de opinião) em que “a definição midiática do real é subordinada à dos atores sociais” (CHARRON, p. 222, 2016).

Televisão também é linguagem

A semiótica passa pelos transmissores dos veículos de comunicação, é importante lembrar. Não se pode esquecer que a construção do estereótipo que, constantemente, associa o homem negro ao crime, passa pela mídia. Seja pela novela que coloca o jovem negro empunhando uma arma no morro, tira sua humanidade, família e o reduz ao espectro de ameaça, ou pelo jornal que, todos os dias, entretém o público com casos de traficantes de pele preta presos ou com seus corpos estatelados no chão. No fundo, é possível ouvir o apresentador bradar: “bandido bom, é bandido morto!”.

O ausência absoluta de rostos negros em espaços de liderança, à frente de debates políticos ou sobre saúde pública, anestesia a sociedade, que, ao normalizar o racismo, permite que o genocídio siga seu curso. Você consegue lembrar o nome de um comentarista de política afrodescendente? E de um criminoso de pele preta? A resposta retrata o inócuo debate racial nos veículos da chamada imprensa hegemônica.

Em 2016, o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) mostrou que o número de colunistas negros de jornal não chegou nem aos 10%. Brancos, respondiam por 91% dos formadores de opinião no jornal O Globo, 96% na Folha de São Paulo e, pasmem, 99% do colunistas do Estado de São Paulo.

Recentemente, uma análise do programa ‘Em Pauta’, da Globonews, chocou pela naturalidade com que APENAS pessoas brancas comentavam a morte brutal de George Floyd, asfixiado pelo joelho do policial branco Derek Chauvin. A exclusão de pessoas negras do debate pegou mal e, no dia seguinte, o canal fez um mea culpa com um programa somente com comentaristas pretos.

Grafite feito em Bruxelas, na Bélgica, com o rosto de George Floyd (Foto: Kenzo Tribouillard/AFP)

A ideia, num primeiro momento, parece encerrar o assunto. Mas aqui pra nós, por que a presença negra é sempre tratada como algo excepcional e não naturalizada? Thiago Amparo, advogado e um dos poucos colunistas negros da Folha de São Paulo, precisou escrever no Twitter que gostaria de ser convidado para debates que não tratassem apenas de racismo. Lembra do estereótipo? A insistência da mídia de ignorar e limitar a participação negra reforça a visão racista de que pessoas negras são inferiores. Isso faz lembrar o livro ‘Antinegritude: O impossível Sujeito Negro na Formação Social Brasileira’, organizado por Osmundo Pinho e João Vargas, que argumenta sobre como a existência plena do sujeito negro é inviável na sociedade atual e de que maneiras a escravidão, genocídio, exclusão político-social e apagamento nos meios de comunicação contribuem para isso.

“Como alguém que estudou direito constitucional na Hungria, lê muito sobre autoritarismo na Europa do Leste, e dá aula em RI, eu bem que poderia ser chamado pra comentar na TV temas internacionais. Mas será que estão preparados para ver negros falando não só sobre racismo?”, questiona Thiago Amparo.

Como disse a jornalista Camila Silva, não adianta preencher a TV com rostos de negros se a linha editorial não se altera. É preciso se lembrar sempre que 36% dos policiais militares do Estado de São Paulo são negros, conforme consta na Lei de Acesso à Informação (LAI).

O advogado e professor Silvio Almeida, autor de ‘Racismo Estrutural’, em participação no programa ‘Roda Viva’, disse o seguinte sobre o assunto: “Representatividade importa, mas não é suficiente para lidar com o racismo”. Não é mesmo. Para enfrentar o problema é preciso primeiro admitir que ele existe.

A admissão da existência do racismo passa pela refundação da polícia, o pensamento de um sistema político diverso e que priorize medidas reparatórias contra negros que, há mais de 400 anos, amargam os efeitos de um racismo e genocídio que não dão sinais de acabar.

Se vidas negras realmente importam, será que ainda vamos ter que convencer não negros que o genocídio negro é um fato que precisa acabar? Ou serão necessários mais 500 anos para que a ficha caia?

Criticar o “abuso” da palavra genocídio é banalizar a morte

Na semana em que escrevíamos este texto veio à tona a polêmica entre Gilmar Mendes e a ala militar do governo, disparada pelo uso da palavra “genocídio” pelo magistrado, no contexto das mortes causadas pela pandemia de Covid-19. No sábado (11/07), Gilmar Mendes apontou um “vazio” de comando no Ministério da Saúde e disse que o Exército estaria se associando a um “genocídio”, durante um debate online promovido pela revista IstoÉ e pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual é dono.

Os militares, é claro, reagiram, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, chegou a declarar: “Se ele tiver grandeza moral, tem que se retratar”. Nesse contexto, Helio Gurovitz, diretor de redação da revista Época e colunista do G1, publicou uma coluna intitulada “O abuso da palavra “genocídio”, dizendo que “Ao indignar-se pelas mortes na pandemia, Gilmar acertou no conteúdo, mas errou na forma”.

Em abril, pretos e pardos representavam quase 1 em cada 4 brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,1%) e chegaram a 1 em cada 3 entre os mortos por Covid-19 (32,8%), em maio de 2020 (Yawar Nazir/Getty Images)

Em sua argumentação, Gurovitz evoca o direito internacional e todos os massacres históricos já descritos aqui por nós em detalhes, assim como os horrores do nazismo, atribuindo a esses eventos históricos a legitimidade do uso da palavra “genocídio”.

Pois é Gurovitz, nós discordamos. Discordamos em gênero número, mas principalmente em raça. O que está acontecendo no Brasil hoje é sim um genocídio e deve ser nomeado como tal. Mas o genocídio não é evidente apenas nas estatísticas de mortalidade acarretadas pela disseminação do coronavírus, apesar de ser essa de fato uma grande tragédia.

O genocídio que vivemos não começou com a pandemia, começou há mais de 500 anos. Precisamos sim chamar o genocídio de genocídio, mas, para isso, precisamos interseccionalizar. Precisamos mostrar quem está morrendo mais e discutir os ‘porquês’.

Precisamos descolonizar o nosso pensamento, a nossa linguagem e a nossa imprensa em direção a uma reparação histórica urgente e inevitável. Criticar o “abuso” da palavra genocídio é banalizar a morte em si.

Como bem disse Joelson Souza, “Precisamos respirar, em diversos aspectos e discutir toda a questão social que, na verdade, coloca o negro nessa posição de poder ser assassinado”.

Coalizão negra por direitos

O artigo aqui escrito serve para enfatizar a multiplicidade de vozes e demonstrar – não que seja preciso – que os movimentos negros brasileiros são atuantes desde que o racismo chegou nessas terras, acompanhado das caravelas portuguesas.

A Coalizão Negra por Direitos se forma a partir da participação coletiva de entidades e grupos dos movimentos negros do Brasil. “Reafirmamos nosso legado de resistência, luta, produção de saberes e de vida”, diz o texto institucional da entidade, que destaca a importância do negro para a construção e formação do Brasil como nação. A pluralidade da Coalizão Negra acontece em momentos como o ‘I Encontro Internacional da Coalizão Negra por Direitos’, que reuniu em São Paulo mais de 100 organizações negras de 20 estados do país, além de lideranças da África do Sul, Equador, Reino Unido, Togo, Colômbia e Estados Unidos.

Importante dizer que a luta só faz sentido se atingir populações LGBTTQI+ e mulheres negras, que mesmo sendo maioria entre a população brasileira, são quem mais sofre com violências, entre elas o feminicídio, que as coloca na base da pirâmide social. Como diz a socióloga e líder política Vilma Reis, vamos juntos, com nome e sobrenome. País algum no mundo alcançará o sonhado desenvolvimento endógeno sem entender que ser antirracista é princípio básico para o progresso.

Alguns livros e documentos que nos ajudaram:

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 16ª ed. São Paulo: Hucitec, 2014.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das Mídias. 2ª ed. – São Paulo: Contexto, 2018.

CHARRON, Jean. Natureza e Transformação do Jornalismo. Florianópolis: Insular; Brasília: FAC Livros, 2016.

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