OAB de São Paulo, silêncio e a dissimulação do Racismo

A ordem dos advogados do Brasil, seção São Paulo realizou no dia 05 de Junho um ato de desagravo a um fato acontecido em 10 de Novembro de 2016, no Tribunal Regional do Trabalho. O advogado Flávio César Damasco foi hostilizado e algemado, porque sem saber se dirigiu ao elevador que era destinado aos juízes e integrantes do Ministério Público, e quando foi para o elevador destinado ao público, foi abordado pelos seguranças perguntando se ele era advogado e que pediam que ele se identificasse.

Por Henrique Oliveira para o Portal Geledés 

A cena foi gravada por 27 minutos pelas câmaras do TRT, nas imagens é possível ver Flávio César Damasco sendo levado pelo braço por 4 seguranças, e um dos seguranças aparece colocando o dedo no rosto de Flávio. A confusão continuou ainda do lado de fora do TRT e terminou no 4ª Distrito Policial. Na Delegacia Flávio Damasco foi liberado depois de apresentar a carteira da OAB.

E mesmo depois de todo o caso, não foi Flávio Damasco que realizou a denúncia na OAB e sim uma testemunha, o advogado Luís Carlos Moro, que contou ter ficado perplexo com o que viu. Luís Carlos Moro disse que Flávio Damasco apresentou a carteira da OAB aos seguranças quando estava sendo conduzido à força.  

O presidente da OAB/ São Paulo, Cid Vieira disse que o acontecido foi um ataque não só contra as prerrogativas da advocacia, mas à cidadania.

Pois bem, o advogado Flávio César Damasco é um homem negro de 60 anos de idade, por que então a OAB de São Paulo não requalificou o caso como Racismo? Já que falou em ataque à cidadania. Porque pela forma em que foi tratado, e pela sua condição de home negro, Flávio Damasco foi sim vítima de Racismo, será que se fosse um homem branco, o vigia não iria orienta – ló, ao invés de exigir sua identificação e agir de forma truculenta, é possível falar de ataque à cidadania de uma pessoa negra em nossa sociedade sem falar de Racismo?

No entanto, acusar esse ato de Racismo levaria a uma posição de defesa dos seguranças e da própria instituição, o que justamente ocorreu, o juiz Marcos Neves Fava assistente administrativo da presidência do TRT disse que a responsabilidade era do advogado Flávio Damasco.

O juiz afirmou que não houve nenhuma ilegalidade por parte dos seguranças, que Flávio Damasco foi detido por “desacato”, porque teria se recusado a se identificar – quando há controvérsias sobre isso – que ele teria desrespeitado os seguranças e os agrediu verbalmente, e que foi algemado por ter se negado entrar no carro para ir à delegacia.

E se tratando do Racismo brasileiro, o mais provável que poderia acontecer por partes dos envolvidos, seria negar que a atitude foi racista, mas é justamente esse o ponto principal no Racismo à brasileira, ele age na sua própria negação.

O Brasil historicamente ficou conhecido pelo mito da “Democracia Racial”, em que diferentemente dos EUA ou África do Sul, aqui não vivemos um regime de segregação racial, evidenciando que aqui não existiria o chamado ‘preconceito de cor’. Por aqui negros e brancos viveriam em plena harmonia, desfrutando de direitos iguais e a mistura étnica, a chamada miscigenação, seria o nosso trunfo em uma sociedade dita como não racista.

O Racismo brasileiro com certeza guarda diferença das expressões racialistas de outros países e sociedades, o Racismo brasileiro se pauta pela sua dissimulação em práticas, intenções e gestos, que buscam silenciar sobre a questão racial ao mesmo tempo que a politiza.

No livro O jogo da dissimulação – Abolição e Cidadania Negra no Brasil, a historiadora Wlamyra de Albuquerque discute como o processo de abolição da escravidão, nas últimas décadas do século XIX foi marcada por uma profunda racialização das relações raciais, com o objetivo de se manter as hierarquias sócio – raciais, em meio a um jogo sutil de demarcação de lugares sociais e privilégios a partir de critério raciais.

No livro a autora discute alguns casos que aconteceram no final no do século XIX, envolvendo a entrada de pessoas negras no Brasil, num contexto onde o projeto de nação não desejava mais a entrada de africanos e afro descendentes, enquanto eram criados artifícios jurídicos para impedir a entrada de negros no país sem que fosse utilizados argumentos racistas.

Em 1866 um fazendeiro Norte Americano, J.A Cole pretendia morar numa fazenda em Campinas, e queria trazer uma mulher negra com seus dois filhos, que já trabalhavam para ele há algum tempo. Nesse mesmo período o cônsul brasileiro em Nova York divulgou uma circular que proibia a importação de escravos para o Brasil.

E assim o fazendeiro concluiu que existia proibição apenas para entrada de pessoas negras, mas que no caso fossem escravas. Os passaportes foram solicitados e o diplomata brasileiro negou concede – los, mas mesmo assim o Norte Americano resolveu viajar com as três pessoas negras. Ao chegar no Rio de Janeiro foi pedido os documentos que comprovassem que as três pessoas negras eram então livres, pois para sociedade brasileira negro era sinônimo de escravo, só que esse documento não existia pois eles nunca tinham sido escravizados, o caso então foi parar na Seção de Justiça do Conselho. E como não foi possível comprovar que os três afros americanos não tinham sido escravos, que então eram libertos, o Conselho evocou a lei de 1831 que proibia a importação de escravos e decidiu pela deportação, ainda recomendou a proibição da entrada de negros dos EUA, mesmo que livres, pois seria uma ameaça a ordem pública e a manutenção da escravidão. Porque bem nesse momento os EUA tinham saído da guerra de Secessão, que pôs fim a escravidão, e no discurso da elite política brasileira a mistura com negros vitoriosos na luta pela liberdade seria um problema para controlar os escravos.

Em 1877 alguns empresários brasileiros pediram autorização para contratar trabalhadores norte – americanos de “cor” e a resposta foi logo dada com base na decisão tomada sobre o caso de 1866. A decisão que foi tomada mantinha a proibição da entrada homens e mulheres de cor vindos dos EUA.

E dessa vez o argumento foi para além da capacidade política de uma suposta contaminação das ideias de liberdade. O argumento utilizado foi que os EUA liberaram os escravos de vez, e estavam com dificuldade de controla – los após a abolição, e a sua vinda para o Brasil seria uma forma de favorecer os EUA e prejudicar o Brasil.

Em nenhum momento o governo brasileiro precisou lançar mão de uma legislação racista para impedir a entrada de pessoas negras no país, a forma em que o racismo foi manipulado e dissimulado, serviu para ser racista sem precisar assumir tal posicionamento explicitamente, e essa é a principal característica histórica do racismo brasileiro.

O Racismo estrutural que cria barreiras sócio – econômicas para que pessoas negras não acessem na mesma proporção em que elas existem na sociedade cargos e funções no mundo jurídico, acabam contribuindo ou muitas vezes determinando a produção e reprodução do Racismo. A juíza do TRT Mylene Pereira Ramos disse numa entrevista que ela se “habituou” em ouvir as pessoas dizerem que ela “não tem cara de juíza”, pelo fato dela ser negra.

A juíza argumenta que uma das maiores dificuldades é ser reconhecida pelo que se é, e que quando uma pessoa se assusta com uma pessoa negra no cargo de juiz não é culpa dessa pessoa, mas sim da sociedade que tem um judiciário pouco diverso em relação a cor/etnia, gênero e orientação sexual. E que uma vez o advogado de um skinhead que teve uma reclamação trabalhista julgada improcedente, chegou a pedir que o caso fosse repassado para um juiz branco e não mais ficasse com ela.

E como bem disse o professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Adilson Moreira, no Brasil se tem uma idéia de que as pessoas negras são inerentemente inferiores, que elas só tem acesso aos mesmos espaços das pessoas brancas em condição de subordinadas.

O silencia da OAB de São Paulo e não politização da questão racial, mesmo realizando um ato de desagravo contribuiu para a dissimulação do Racismo brasileiro incrustado na sociedade e nas instituições.

 

Referência Bibliográfica

ALBUQUERQUE, Wlamyra R,de, O jogo da dissimulação: Abolição e cidadania negra do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

 

Henrique Oliveira é graduado em História e mestrando em História Social pela UFBA e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.

 

 

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