Que belo filme de sabotagem é Corra! (Get Out). Jordan Peele suga a cartilha do “filme jovem de suspense” e, ao regurgitá-la, em vez de entregar um produto genérico, à moda “o sucesso dessa temporada”, nos oferece um filme aterrorizante fundado no desejo de elaboração de uma das mais complexas facetas do racismo, a saber: de um lado da moeda, admiração da branquitude por corpos negros e por mentes negras; do outro, o desdém e desmazelo por nossas vidas. Simples assim.
Por Heitor Augusto Do Urso de Lata
Na jornada, as sutilezas e referências que Get Out deixa pelo caminho criam uma experiência que conjuga uma certa excitação em estar assistindo um filme como esse com um pavor não-verbal de ser eu o próximo a cair na tal cova funda trazida pelo filme.
O prólogo de Corra! traz um retrato bastante reconhecível. Paisagem suburbana à noite, personagem à deriva, completo silêncio: o que está fora de quadro ou atrás das árvores? Meia dúzia de filmes de suspense vistos na vida e já se sabe: algo vai acontecer. Dessa premissa de identificação cinéfila – espectador que antecipa a tragédia ao reconhecer num filme elementos familiares da sua cultura cinematográfica –, Jordan Peele racializa e dá dois passos à frente: um homem negro indo a um subúrbio norte-americano (sendo “subúrbio norte-americano” quase sempre sinônimo de “bairro de brancos”) não vai terminar bem. Desculpe-me a referência tosca, mas imediatamente me veio à mente esse personagem aqui, que diz “Eu sabia que algo estava errado quando uma menininha bonitinha branca saiu correndo pros braços de um homem negro”. É algo que apenas se sabe, e pronto, está lá a evidência do fora-do-real, do fora-de-ordem.
Antes de o filme começar de fato, já no prólogo o espectador – em especial o negro – já está a plenos pulmões gritando o canto que intitula o filme: “Corra!”. Ou seja, com dois minutos Get Out já tem tamanha espessura.
Ao mesmo tempo que carrega uma densidade, Corra! manipula fórmulas simples, pouco complexas, exploradas à exaustão pelo cinema de entretenimento. Jordan Peele é responsável por nos ter entregue um filme com uma embalagem que parece remeter a perfume barato, facilmente substituível – como, por exemplo, o Transformers deste ano pode facilmente ser trocado no verão seguinte pelo próximo filme de aventura barulhento sem que os que ganham dinheiro com o cinema deixem de ganhar dinheiro com cinema –, mas que contém blocos de sentido altamente elaborados, não-negociados ou não-amaciados para falar com todas as audiências.
E o que quero dizer com “embalagem de perfume barato”? Seguir meticulosamente as recomendações dos manuais de roteiro, quase que se deixando aprisionar por eles, como se o que lá está escrito fosse mandamento. Estão lá, pois, tudo que, em tese, deveria estar para se obter um “bom roteiro”: os três atos, o conflito do personagem, a revelação da história por trás da história, o coadjuvante que funciona como alívio cômico, a inserção de detalhes que, retomados mais à frente, serão indispensáveis em momentos cruciais da história. Mais ainda: seguindo a tendência mais recentes dos blockbuster que devem deixar o espectador esgotado, o “vilão” (no caso de Get Out, os personagens que exercem atos de vilania e que impedem o protagonista de alcançar seu objetivo, o de escapar) precisa ser eliminado várias vezes para que se sinta que os quase trinta reais foram bem gastos.
Qualquer filmão mediano cheira a perfume barato com essa embalagem. Get Out topa por vezes se autoembalar com o mesmo material. Peele entrou numa engrenagem já bem engraxada apenas para dar tilt nela. Que malandro. É como se ele tivesse percebido qual o caminho para se ocupar um tipo de tela, percorreu esse caminho, mas na hora de colocar nela um produto conforme à equação ele tenha decidido simplesmente apertar o botão vermelho e falar do que realmente queria. Isso de fato não chega a ser uma surpresa, posto que Peele, ao lado de Keegan-Michael Key, no programa Key and Peele , tinha inventado um esquete – Luther, the Anger Translator (Luther, o Tradutor Raivoso) – que reflete nada mais do que uma profunda consciência de como é construída a retórica hegemônica (no caso do esquete, o ex-presidente Barack Obama) e como pessoas negras modulam seus discursos (e em certa medida, suas próprias vidas) para transitar por espaços.
Corra tem a embalagem de um blockbuster, o que, digamos, torna inevitável, quase injustificável sua ausência do circuito de shoppings. Então o filme ocupa esses espaços. Uma vez lá a tinta de mentirinha com a qual ele cobria seu corpo derrete e o real filme se revela.
E que filme é esse? Um filme melancólico que faz um diagnóstico nada menos que deprimente. Não importa se o herói morre ou se salva no final, o dano está feito. Não há para onde correr. Corre-se da casa, é verdade, mas a casa dos pais da namorada em Get Out é só uma casa dentro do Condomínio Racismo, cercado de muros altíssimos e vigiados por câmeras.
Por tudo isso não há raccord melhor que desses dois pares aqui:
E que tal a serenidade de quem no 7 a 1 da vida jamais deixará de ser a Alemanha?
Corra é também uma espécie de filme de vampiros, ainda que jamais vejamos em cena pescoços sendo mordidos ou seres humanos com dentes protuberantes. Melhor: filme de vampirismo, premissa que acompanha com constância grandes obras de diretores negros desejosos por elaborar uma experiência de negritude calcada na expropriação das nossas mentes – não há como deixar de citar Ganja and Hess (1974), de Bill Gunn.
E também não há como deixar de citar um filme bem menos nobre, mas não menos presente no universo de realização de Corra: O Monstro de Duas Cabeças (The thing with two heads), de 1972, onde um racista decrépito à beira da morte tem de lidar com a surpresa e desgosto de ter sua cabeça transplantada para um corpo negro. Tanto lá quanto cá vidas negras são tidas como descartáveis, meros vãos de passagem para personagens brancos. Em ambos, contudo, o injustamente condenado Jack Moss e o fotógrafo aterrorizado Chris lutam para manter suas respectivas agências – manter-se vivo dentro do próprio corpo em O Monstro…, impedir ser mandado para a cova funda em Get Out.
Em “O espectador negro: questões acerca da identificação e resistência”, o professor Manthia Diawara argumenta como historicamente o cinema hollywoodiano convocou à identificação com personagens que reforçam uma ideologia racista. Para tal análise ele utiliza tanto um filme do momento de fundação de convenções narrativas como O Nascimento de uma Nação (1917) quanto filmes contemporâneos à época de escrita do texto – anos 1980 –, caso de 48 Horas.
Ao lado da desracialização textual ou o isolamento dos negros, o padrão narrativo de negros jogando o jogo pelas regras hegemônicas e perdendo também nega o prazer desfrutado na identificação do espectador. Nos termos da analogia de Édipo na estrutura de tais padrões narrativos, o sujeito negro parece sempre perder na competição pela posição simbólica do Pai ou da figura de autoridade. A nível de questões do espectador, um espectador negro, independentemente do gênero ou sexualidade, não desfruta do prazer disponível para o espectador masculino branco e heterossexual, tomado como o sujeito-alvo do discurso do filme.
Volto ao tópico da mistura de sentimentos ao assistir a Corra: excitação e pavor. Sobre o primeiro, durante a sessão me correu por dentro uma sensação de sangue circulando em disparada pelas veias. No pós-sessão, nos momentos de organização das ideias, surgiram no meu horizonte duas palavras que, em teoria, não seriam naturalmente associadas a tal filme: “direito” e “cidadania”. A existência de um ato de sabotagem como esse de Jordan Peele, um artista que por anos alimentou meu prazer espectatorial com o programa Key and Peele, é um direito que tenho enquanto espectador negro. Se por tantos anos, como mesmo pontua a análise de Diawara, me esteve indisponível o “desfrute do prazer”, então é possível entender em que circuito nevrálgico atinge Corra! e o impacto desse contato.
Sobre o segundo: pavor de ser como o veado na estrada, “indesejado, que está atrapalhando e povoando a vizinhança”; de presenciar a expropriação e apropriação da minha existência histórica enquanto caio na cova funda e miro para cima, como olhando pra uma tela de cinema, num plano subjetivo, consciente de ser relegado aos bastidores enquanto quem apropria fica bem no clique; do que aperta a minha mão e diz que sou fortão – porque negro –, da que especula se meu desempenho sexual é destruidor – porque negro –, daquele que quer roubar meu olhar – porque negro.
Chris luta para sobreviver aos ataques dos vampiros. Mas mesmo que saia vivo, o quão vivo ele estará?
Alright, de Kendrick Lamar, tornou-se o hino informal do movimento Black Lives Matter em parte porque contém uma dimensão de alívio, de que tudo ficará bem no final, apesar dos pesares. “Se Deus tá com nóis, então a gente vai ficar bem”, diz o último verso do refrão. Em Get Out Chris, mesmo com a piada do amigo para descontrair, parece não se beneficiar desse holograma de oásis.