‘Olha a cabeleira do Zezé deixa ele ser o que quiser’

Artistas, pesquisadores e foliões refletem sobre marchinhas tradicionais que reproduzem preconceitos da sociedade

Foi um post de Facebook que levantou a questão e esquentou o debate sobre as tradicionais marchinhas que reproduzem preconceitos sociais. Há algum tempo, o músico e idealizador do Bloco A Espetacular Charanga do França, Thiago França, também integrante da banda Metá Metá, se incomodou com os versos de “O Teu Cabelo Não Nega”, originalmente intitulada “Mulata” pelos compositores Irmãos Valença. A música teve seu nome trocado pelo compositor Lamartine Babo, o Rei do Carnaval, que a levou à boca dos foliões brasileiros, da década de 1930 aos dias de hoje.

Ao pensar no repertório do Charanga, bloco que desde 2015 desfila versões instrumentais, com sopro e percussão, no Carnaval de São Paulo, Thiago se atentou para os versos já históricos na música popular brasileira. “Não há, para mim, outra interpretação possível para ‘mas como a cor não pega’ que não seja depreciação à cor. Um homem negro não falaria isso a uma mulher negra”, afirma Thiago.

Ao ver o bloco do qual participa reproduzir tais representações, neste ano, ele resolveu fazer algo a respeito: “Estou oficializando através desse comunicado. A gente não vai tocar ‘O Teu Cabelo Não Nega’. O verso ‘mas como a cor não pega, mulata’ é racismo demais pro meu gosto”, postou Thiago na página do bloco no Facebook, explicitando que a posição se tratava de uma visão particular. “Não é uma tentativa de apagar o passado, nem de deletar a história de uma obra de arte. Ela existe e existirá. Longe de mim promover um boicote, muito menos atacar quem tocar essa marchinha”, anunciava.

A decisão de Thiago ganhou adesão de outros blocos, como o Mulheres Rodadas (RJ), bloco feminista, e gerou manchetes que abordavam a decisão como banimento, censura e boicote. Polêmicas de lado, o incômodo do músico reabre um campo de debate e reflexões para além dos limites binários do “pode” e “não pode” tocar tais marchinhas no Carnaval. “Como artista, eu não quero censurar nada. Vamos encontrar sexismo, racismo, machismo em diversas músicas vestidas com melodias e harmonias maravilhosas. E é preciso ver isso”, afirma o músico.

Festa popular. A professora Míriam Hermeto, do departamento de História da UFMG, nos ajuda a lançar uma leitura crítica sobre o tema a partir da noção de canção na música popular brasileira. “No século XX, na era da indústria, com todo o apelo comercial e com toda a delicadeza que envolve ser um produto de arte no meio comercial, a marchinha também vira um produto de mercado importante, porque o Carnaval é uma grande festa popular no Brasil, também explorada do ponto de vista comercial”, afirma a pesquisadora.

É nesse contexto que canções como “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão” ganham força popular, com seus versos, abertos a diversas interpretações, cantadas em meio à folia. “A canção é produzida em determinado momento e vai dizer daquela sociedade como um todo, não apenas sobre o autor, mas da sociedade que a produziu. Se alguns elementos são utilizados como apelo comercial, é sinal de que essas representações que ela traz têm recepção. Pode ser que, em alguns anos, isso modifique, mude de sentido”, observa.

É pensando no contexto atual que Miriam encontra coerência na postura dos blocos que preferem evitar a execução de tais composições. “Quando vão para o Carnaval, as pessoas não vão pensar sobre as marchinhas que trazem representações sociais entendidas como naturais para um determinado momento da história que, hoje, não devemos naturalizar. É preciso pensar sobre elas e fazê-las circular como um objeto de reflexão, o que é diferente de tocar no momento da folia, o que seria reproduzir preconceitos sociais. Ou, ao menos, que haja uma proposta de sátira das próprias marchinhas”, pontua Miriam.

Para o músico Marcos Frederico, compositor de diversas marchinhas, como “Não Enche o Saco do Chico”, é preciso lembrar a história dessas canções para repensá-las hoje. “Essas marchinhas construíram o repertório do Carnaval. Fizeram a alegria de muita gente, sem que as pessoas achassem que elas ofendiam. E, de certa forma, elas influenciam as marchinhas de hoje. Se estamos fazendo marchinha é porque ouvimos muito essas canções históricas. Mas as sociedades evoluem e, com isso, surgem os questionamentos. É válido começar a repensar sobre isso porque a sociedade mudou e o que escrevemos é o que vai ser cantado na rua. Uma pitada de sacanagem é importante, não pode perder a brincadeira, mas tem que ter cuidado”, aponta.

CARNAVAL

Entre marchinhas políticas e preconceituosas

Folia. Há cinco anos, o Concurso de Marchinha Mestre Jonas têm revelado hits políticos do Carnaval

A sátira, o deboche e uma dose de sacanagem sempre foram características das marchinhas carnavalescas. Aliado a isso, o que tem levado as criações de Belo Horizonte a alcançar o patamar nacional é a pegada política da denúncia e das reflexões que as canções têm trazido.

“As marchinhas de BH estão dentro desse fenômeno recente de reviver e reinventar o Carnaval da cidade, com um caráter político muito forte, desde os temas dos blocos até a circulação por espaços da cidade como as passagens pelas periferias. E isso tem a ver com o momento que a cidade vive. É curioso pensar que as marchinhas estão renascendo e isso tem a ver com o aquecimento da canção na cidade, promovido por esse grupo de foliões artistas que incentivaram esse movimento do Carnaval e que vêm produzindo uma cena local da canção”, afirma a professora do departamento de História da UFMG, Miriam Hermeto.

É o caso dos últimos hits carnavalescos, como a “Coxinha da Madrasta”, de 2012, ou ainda “Pó Royal”, de 2014, que satirizam acontecimentos e personalidades da política mineira. Ampliando o caráter local das reflexões trazidas pelas canções, algumas marchinhas foram tocar em assuntos nacionais e, neste ano, foram cutucar o prefeito de São Paulo, João Doria. “Pinto por Cima” foi composta com a participação de alguns músicos mineiros, como Gustavo Maguá e Vitor Velloso, após polêmica medida de Doria de apagar painéis de grafite espalhados pela capital paulista. “A marchinha tem essa função de dar uma resposta, de cobrar e de falar de uma forma engraçada de questões em que a sociedade está de olho.

São assuntos que as pessoas querem falar na rua e nós traduzimos isso em canção”, observa o músico Marcos Frederico, que irá lançar o disco “As Mais Gozadas”, com marchinhas autorais da Orquestra Royal, no dia 23 de fevereiro, na Sapucaí.

O tom político de algumas dessas marchinhas que têm ganhado coro surgiu, entre outros fatores, incentivado pelo Concurso de Marchinhas Mestre Jonas, que, desde 2012, vem promovendo a criação de canções carnavalescas. Mas pelo próprio concurso, é possível ver o outro lado da moeda, que também evidencia, nos dias de hoje, uma repetição de representações que expressam preconceito a sujeitos sociais como as mulheres, os negros e os LGBTs, tal qual algumas marchinhas tradicionais que estão sendo postas à reflexão neste Carnaval.

“Todos os anos, desde que o concurso existe, recebemos marchinhas de vários tipos e temáticas. Vemos que existe uma tradição da brincadeira em marchinhas e, para fazê-la, trazem a mulher como principal tema. Algumas radicalmente machistas, outras fazem chacota com as pessoas que integram a comunidade LGBT, carregadas de preconceitos”, conta Brisa Marques, curadora do concurso.

“As pessoas falam que hoje é difícil brincar porque podemos ser julgados por racismo e outros preconceitos. Mas hoje temos uma consciência cada vez mais presente na sociedade, e que bom que temos nos atentado pra isso. Não é mais possível usar o eu lírico para falar da mulher, do negro, dos homossexuais de forma pejorativa e justificar isso pelo fato de ser arte e uma canção de Carnaval. Não é uma questão de ser moralista, mas de quebrar o moralismo, podendo falar de sexo e de qualquer outra temática sem colocar o outro no lugar da depreciação”, afirma Brisa. “Numa sociedade atenta a essas questões, por que não mudar esse discurso e fazer uma nova história?”, indaga.

Ela conta que, como jurada do concurso, tentou não classificar marchinhas carregadas de reproduções preconceituosas, esforço também garantido pela formação da comissão. “Normalmente, o júri é majoritariamente de homens. Pela primeira vez, a comissão foi formada por duas mulheres, eu e Aline Calixto, e um homem, o Patrick Lommez. Colocar a mulher nesse lugar de jurada muda a visão sobre as canções”, afirma Brisa.

A participação das mulheres entre o grupo de compositores de marchinhas em BH também é um ponto a ser observado. “Estamos atentos e precisamos de mais participação feminina”, diz Marcos.

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