“Eu vos declaro marido e marido, eu vos declaro mulher e mulher/ Hoje a união tem um novo sentido, tudo é permitido, casa quem quiser”, diz a letra do samba “Eu vos declaro”, de Fernando Procópio, um dos sambistas que vêm se destacando nas rodas de samba dedicadas a novos compositores, como as que acontecem no Beco do Rato, na Lapa, onde nasceu o hit.
no O Globo
Nas 140 rodas de samba que se espraiam pela cidade — número que não para de crescer, como mostrou reportagem publicada domingo no GLOBO — há uma série de sucessos entoados pelos frequentadores que passam ao largo dos meios de difusão tradicionais. Em comum, as novas músicas ainda abordam temas românticos, descrevem situações curiosas do dia a dia ou prestam homenagem a figuras do meio, como é característico do gênero. A diferença é que as letras estão cada vez mais progressistas.
— O samba tradicionalmente é muito machista. Uma coisa que percebo nessa nova leva de sambas é que os compositores estão muito mais atentos. E, quando a música é muito boa, todo mundo canta, assimilando o que a letra diz — observa o compositor Julio Morais, um dos coordenadores da Rede Carioca das Rodas de Samba, sobre a música que virou um hino contra a homofobia nas rodas de samba nos últimos meses (em outro trecho, o samba diz “O filho da mãe não é filho do pai, tem dois pais, duas mães/ quem é quem ninguém diz, olha eu aprendi com a vida, família bonita é família feliz”).
‘AMÉLIA’ VETADA NA SERRINHA
Julio, que circula por muitos eventos do gênero na cidade por conta da “Rede” (que funciona como uma associação das rodas cariocas), conta ainda que na Roda de Samba da Serrinha, no Morro da Serrinha, na Zona Norte, está vetada a música “Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago. O clássico, de versos como “Amélia não tinha a menor vaidade, Amélia é que era mulher de verdade…” foi limada do repertório por exigência das mulheres que frequentam o evento.
— Elas estão certíssimas, não dá mais para cantar esse tipo de coisa em 2017 — atesta Julio.
Outro samba fresco e que tem sido muito cantado nas rodas do Rio é “Pra matar o preconceito”, de Manuela Trindade, a Manu da Cuíca, e Raul DiCaprio, interpretado pelas cantoras Marina Iris e Nina Rosa. A primeira estrofe diz: “Na rua me chamam de gostosa, o gringo acha que eu nasci pra dar/ No postal mais vendido em qualquer loja, tô lá eu de costas contra o mar/ Falam que meu cabelo é ruim, é bombril, toin-oin-oi, é pixaim/ O olhar tipo porta de serviço é um míssil invisível contra mim”.
— Eu e a Manu consultamos mulheres negras antes de compor este samba. Nós achamos que o tema estava na boca de todo mundo e precisava virar música — conta Raul, lembrando que só estava assumindo o “lugar de fala” da letrista porque ela estava offline, de férias em Alagoas. — Jogamos na cara e na coragem na roda e a música já virou a ‘Conceição’ da Marina Íris! Está fazendo tanto sucesso que decidimos seguir no tema. Já temos uma nova, ‘Jeito de gentear’, que aborda o preconceito de uma forma geral.
Para o compositor Chico Alves, que comanda rodas de samba que abrem espaço para músicas inéditas (a próxima acontece na Rua do Ouvidor, no Centro, dia 4 de fevereiro, a partir das 15h, em frente a Livraria Folha Seca) os temas rendem excelentes sambas, mas pondera:
— É preciso ter um pouco de bom senso ao analisar canções antigas, sem temporalizar a época em que foram feitas. Só não admito radicalismos, é ruim para a própria música. Claro que fazer letras machistas hoje em dia é inadmissível, mas há gente execrando músicas que foram feitas em outra época, em que as pessoas tinham outra consciência. Eu relativizo mais — alega ele, citando justamente “Amélia”.
‘EU VOS DECLARO’, FERNANDO PROCÓPIO
Eu vos declaro marido e marido
Eu vos declaro mulher e mulher
Hoje a união tem um novo sentido
Tudo é permitido,
casa quem quiser
O filho da mãe não é filho do pai
Tem dois pais, duas mães
Quem é quem ninguém diz
Família bonita é família feliz
E tanto faz se for ele com ele
Ou se é ela com ela
Está nos jornais, está
nas novelas
O que importa é o bem do casal
Laço matrimonial,
amor incondicional
Se houver carinho e respeito
Não há jeito disso fazer mal
Casal era bem diferente
Pois antigamente isso
pegava mal
Era triste quem se aventurava
Até era tachado de ser imoral
Hoje em dia isso tudo é passado
Pois na relação
ninguém mete a colher
De homem com homem
Ou mulher com mulher