Os desafios no mercado de trabalho para mulheres negras no DF

Mesmo qualificadas, elas enfrentam racismo, machismo e desconfiança no mercado de trabalho do Distrito Federal. Festival Latinidades debate, hoje, no Museu da República, saídas para enfrentar essas estruturas de desigualdade

No Distrito Federal, o caminho até uma vaga de emprego ainda é mais longo, difícil e desigual para mulheres negras. Não se trata apenas da busca por uma oportunidade, mas de atravessar barreiras que muitas vezes começam antes mesmo da entrevista, na cor da pele, no nome escrito no currículo, no CEP, no cabelo, no olhar do recrutador.

Ana Dalva Fernandes, 59 anos, conhece bem essa realidade. Vinda do Maranhão, enfrentou uma série de recusas até conseguir o primeiro emprego como cabeleireira em um salão da capital. “Quando eu cheguei, sabia fazer tudo. Mas ninguém queria ser atendido por mim. Um dia, um rapaz veio cortar o cabelo do filho e, quando viu que seria eu, não quis mais”, conta. Mais tarde, Ana decidiu abrir seu próprio salão em Taguatinga. Mesmo como empresária, seguiu sendo questionada. “As pessoas duvidavam que o salão era meu. Eu ainda vejo muito preconceito no mercado de trabalho para mulheres negras.”

A experiência negativa de Ana não é um caso isolado. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) confirmam o cenário de desigualdade. Em 2023, as mulheres negras representavam 34,7% da população em idade ativa na Área Metropolitana de Brasília (AMB), sendo 67,7% no DF e 32,3% na Periferia Metropolitana. No entanto, a presença delas entre os economicamente inativos chega a 32,2% no DF e a 41,5% na periferia, um reflexo direto da exclusão.

Dai Schmidt, 39, moradora da periferia e profissional da área de comunicação, lembra das barreiras invisíveis que enfrentou para conseguir o primeiro emprego. “Mesmo quando eu estava qualificada, sentia que precisava me esforçar o dobro para ser notada. Tinha que me vestir melhor, me comportar de forma exemplar, estudar mais. Tudo para compensar o que a sociedade considerava ‘excesso’ em mim: o meu cabelo, meu tom de pele, meu endereço”, relata.

Ana Dalva Fernandes
Ana Dalva: “As pessoas duvidavam que o salão era meu”(foto: Aquivo pessoal )

Ela conta que em diversas entrevistas sentiu que sua presença incomodava. “Ouvi comentários sobre minha aparência, perguntas invasivas sobre minha vida pessoal, e percebi nos olhares que eu não era o perfil que eles esperavam. Trabalhei numa agência de modelos e enfrentei piadas racistas, desconfiança constante e um ambiente em que minha competência sempre era colocada em dúvida. Foi um exercício diário de reconstrução da autoestima”, lembra.

Para Dai, ser mulher é um desafio. Ser mulher e negra intensifica tudo. “Vi homens e mulheres brancas sendo promovidos com menos experiência do que eu. A mulher negra enfrenta uma dupla opressão: o machismo e o racismo. É como se estivéssemos sempre dois passos atrás, lutando para sermos vistas como capazes, enquanto os outros já estão sendo celebrados”, ressalta.

Debate

A realidade de Ana e Dai é a mesma de milhares. Mais de 380 mil mulheres negras vivem no DF e no Entorno, e muitas continuam à margem de um mercado que ainda insiste em fechar as portas para elas. Por isso, ações que deem visibilidade à causa são fundamentais.

Hoje, o Festival Latinidades promove, no Museu Nacional da República, um debate sobre trabalho digno para jovens mulheres negras, durante o 2º Encontro Nacional da Rede MultiAtores MUDE com Elas. O evento contará com a presença de Giselle dos Anjos Santos, historiadora, ativista e pesquisadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).

Giselle acredita que a transformação passa pela união de esforços entre Estado, empresas, sociedade civil, sindicatos e movimentos sociais. “É preciso criar espaços de escuta, troca e articulação. Só com diálogo real e metas conjuntas podemos enfrentar as estruturas de desigualdade que afetam as mulheres negras no trabalho. Essa não é uma questão individual, é coletiva, estrutural e urgente.”

Mais proteção

A advogada Patricia Zaponni, especialista em gênero, reforça que a legislação brasileira, embora proíba discriminação por raça e sexo, ainda é insuficiente. “Temos a Lei 14.611/2023, que trata da igualdade salarial, mas, na prática, as mulheres negras continuam ganhando menos que os homens, e até mesmo que as mulheres brancas. O racismo estrutural não está contemplado nas leis e isso as impede de avançar”, aponta.

Segundo ela, a informalidade é outro obstáculo grave. “A maioria das mulheres negras atua em empregos informais, com pouca proteção e direitos. O trabalho doméstico, por exemplo, concentra grande parte delas, muitas vezes em condições precárias.”

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