Mais um mês do Orgulho LGBT+ está terminando no país que mais mata LGBTs no mundo e que elegeu um LGBTfóbico assumido para a ocupar a presidência da república. Muito se diz que datas como essas são criadas para fazer lembrar e refletir. Refletir sobre a violência perpetrada contra LGBTs e lembrar daqueles que vieram antes dessa geração, que suaram, lutaram e morreram para que tivessem melhores condições de vida, e para que seus direitos (e existências) fossem reconhecidos.
Apesar de a comunidade negra ter sido forjada em muita luta contra o preconceito e contra a violência – que ceifa inúmeras vidas negras diariamente -, parte dos negros que se autoproclamam conscientes sobre questões de raça ainda destila LGBTfobia, demonstrando irritação quando são levantadas as existências de LGBTs negros, ou ainda, quando são pedidos tolerância e respeito para eles dentro de espaços voltados às pessoas negras e debates raciais.
Meu intuito aqui não é começar uma DR ou um racha dentro da comunidade negra, mas sim demonstrar como o respeito e a valorização das diversidades faz parte de quem somos enquanto comunidade.
Para começar, pelo o que indica trabalhos como “África Negra, História e Civilizações” do historiador congolês Elikia Mbokolo; “Sahel: a outra costa da África” de Paulo de Moraes Farias e “Afropolitanismo” do camaronês Achille Mbembe, muitas sociedades africanas eram relativamente mais abertas a outros povos e culturas e a diversidade em comparação aos europeus.
Para citar alguns exemplos, Kush e Kemet (Egito) realizaram intensas trocas culturais durante a antiguidade. Ao que parece, os dois parecem ter influenciado um ao outro no decorrer dos anos de forma alternada. Durante o mesmo período da antiguidade, príncipes axumitas se abriram para o que entendemos hoje como cristianismo, devido a intensas trocas culturais e comerciais entre Axum e Bizâncio (Constantinopla). A partir do século IV os descendentes desses príncipes, entenderam que a conversão ao cristianismo poderia ser favorável às suas intenções de consolidação política.
Existem, também, indícios de que os povos ao sul do deserto do Saara – já dentro da África Subsaariana, conhecida durante muito tempo como “África Negra” – tinham interesse nos comerciantes islamizados que atravessavam o deserto para fazer comércio a partir do século VIII, e teriam aprendido árabe para facilitar as trocas, tanto comerciais, quanto culturais e de conhecimento.
É por conta de casos como esse – que não são incomuns na história do continente africano – que Mbembe chega a defender o estudo da história do continente de forma holística, ignorando fronteiras. Justamente por conta das intensas trocas culturais entre diferentes povos, o que impossibilitaria a completa compreensão de hábitos, práticas culturais e religiosas de determinados povos. Isso porque, não raramente, esses elementos, ou ao menos, parte deles, advinha de outro povo/cultura. Isso não significa, é claro, que tudo sempre foi pacífico no continente, e que os povos africanos não entravam em conflito. Eles guerreavam, claro, assim como os europeus, os indígenas, os asiáticos…basicamente todos os povos do mundo. Porque onde tem ser humano, tem furdunço.
Mas a resposta de muitos desses povos africanos quando encontravam povos estrangeiros – seja do próprio continente ou de outro – e outras culturas, não era, necessariamente, uma de inferiorização e violência. Muitos se abriram para aprender com esses outros povos e incorporavam hábitos e práticas quando entendiam que isso era positivo. Essas trocas só aprofundaram ainda mais a diversidade que já existia entre povos do continente africano, diversidade essa que se faz presente até hoje, tanto nas bandas de lá, quanto nas bandas de cá.
Relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo gênero – assim como performances de gênero que não se enquadram no padrão masculino/feminino – foram identificadas em quase todas, se não todas, as sociedades do mundo. E isso inclui a África. Relacionamentos entre pessoas de mesmo gênero foram observadas em vários povos através do continente. Desde os Zande da África Central – Que tinham um sistema parecido com o encontrado na Grécia Antiga, onde um guerreiro tomaria como amante um jovem mais novo, até que esse se tornasse um guerreiro e pudesse escolher um parceiro mais novo para si – até a Uganda – onde um rei que se converteu ao cristianismo queimou vivo os pajens que recusaram a se deitar com ele assim como as mulheres faziam, quando requisitado – e o Zimbabwe – onde foram encontradas pinturas de orgias entre homens -, passando pela Angola – Onde exploradores britânicos encontraram mulheres que se relacionavam com outras mulheres, as quais se referiam como “bruxas”.
Embora muitos africanos hoje acreditem que “homossexualidade não é uma coisa africana” – a exemplo da fala dada por Yahya Jammeh em 2015, na época em que era presidente da Gambia, em que dizia que, se um homem quisesse casar com outro homem no país, o governo desapareceria com eles não havendo nada que pessoas brancas pudessem fazer sobre isso – o que, de fato, chegou dentro dos navios dos colonizadores foi a LGBTfobia, porque esses relacionamentos – E performances de gênero – eram tratados com naturalidade.
Essa naturalidade que eu me refiro pode ser encontrada, hoje, em religiões de matriz africana – que foram, durante muito tempo, as únicas que recebiam LGBTs, possuindo até ícones como João da Gomeia, homenageado ano passado no carnaval do Rio pela GRES Grande Rio – ou mesmo em “O espírito da intimidade” de Sobonfu Somé, no qual a autora descreve que aqueles que entendemos hoje como “homossexuais” tinham um lugar sagrado dentro da organização social do povo Dagara. Isso porque, entendia-se que seriam os únicos capazes de se comunicar tanto com o mundo material, quanto o espiritual.
Existiram, também, grandes ativistas pelos direitos dos LGBTs no continente africano, como o sul-africano Simon Nkoli, que lutou contra o Apartheid e ainda fundou a primeira organização de Gays e Lésbicas negros do país.
Trazer isso à luz é importante para que entendam que lidar com diferentes sexualidades e identidades de gênero, assim como diversidade, de forma mais ampla, é algo que faz parte do que somos. E torna a jornada de LGBTs negros menos solitária, uma vez que sofremos fortemente com o racismo dentro dos meios LGBTQ. Essas figuras também fazem parte do sistema ancestral que nos baseia e nos move, o que não faz parte dele é a LGBTfobia de muitos.
“Mas se existiam LGBTs na África e todo mundo tava de boas com isso, então porque eles são discriminados na África hoje em dia?”
Primeiro, existem exceções para isso, a África do Sul por exemplo protege por lei a existência e os direitos dos LGBTs desde os anos 90, a partir da constituição criada no pós-Apartheid (muitos dizem que por influência de Nkoli). Segundo que existiu um negocinho muito chato chamado colonização. E a colonização precisa ser entendida não só como esse processo que levou a escravização de negros e indígenas e a superexploração de nossas terras e recursos, mas também como a imposição de novos modos de vida, organização social/política/econômica, práticas religiosas, culturais e uma nova forma de ver a vida. E o que entendemos hoje como LGBTfobia foi, em grande parte, imposta de forma EXTREMAMENTE violenta durante esse processo.
Lembremos que o cristianismo – não importando a corrente, ortodoxo, anglicano, calvinista… – não enxergava com bons olhos a relação entre pessoas do mesmo gênero. “Os sodomitas”, como eram chamados, eram severamente punidos quando encontrados pelos colonizadores. Esses atos que, segundo os europeus da época, “atentavam contra a natureza” eram, inclusive, associados a esses povos negros africanos e indígenas, sendo um dos motivos que justificavam o fato deles serem entendidos pelos brancos como “selvagens”. Isso porque, na visão dos invasores, somente povos selvagens poderiam se envolver em práticas que, para eles, eram tão chocantes e absurdas. Um exemplo disso foi um indígena brasileiro encontrado pelos portugueses – onde hoje fica o estado do Maranhão – que, por ter uma relação com outro indígena, foi posto num canhão e explodido.
As administrações coloniais estabeleceram tanto aqui, quanto na África e na Ásia, leis que proibiam estritamente felação e sodomia, com punições severas para os que fossem encontrados engajando em tais práticas. A lei que criminalizava a homossexualidade na Índia, abolida há 3 anos, era uma lei colonial, criada em 1861 durante a era vitoriana. Não é à toa que muitos países que foram colonizados pela Europa fossem tão duros e reagissem e naturalizassem muita violência sendo dirigidas a LGBTs.
O processo de tomada de consciência com relação a questões raciais, e de aproximação de modos mais negros e afrocentrados de enxergar a vida e de ser e estar no mundo, não anda de mãos dadas com LGBTfobia, muito pelo contrário. É o abandono de lógicas coloniais e racistas de ver o mundo, o que inclui a LGBTfobia que chega às Américas, a África, a Oceania e boa parte da Ásia através da colonização.
A adoção de formas menos embranquecidas de enxergar o mundo traz consigo formas mais orgânicas – e menos preconceituosas – de lidar com as diversas sexualidades e identidades de gênero. Esses que vieram antes de nós e não se enquadravam dentro do que chamam de Cis-heterossexualidade, ainda são nossos ancestrais e também merecem nosso carinho, nosso dengo e nosso respeito.
Por outro lado, se os povos africanos antes da chegada dos colonizadores eram mesmo diversos e relativamente mais abertos aos elementos e práticas estranhos a sua cultura – assim como para o que outros povos poderiam lhes oferecer – então por que não aprendermos com isso, desenvolvendo essa postura dentro do nosso próprio meio? O verdadeiro sentido de comunidade nunca poderá ser alcançado sem que saibamos apreciar a nossa diversidade, e entendamos que, longe de nos enfraquecer, ela nos fortalece.
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