Toda pessoa branca nasce com o direito de ser estimada. Quer queira ou não, quer deseje ou não, mereça ou não, concorde ou discorde, o simples fato de, ao nascer, ser branco/caucasiano lhes assegura uma vantagem em todo o planeta que é a de ser tratado como um ser humano, a priori. Assim, tem o direito à dignidade, à autoestima, a ser considerado normal; tem o direito de viver na bolha da branquitude sem ter que provar mérito algum. É o que tem sido chamado de privilégio da brancura. Os grupos que são racializadas, etnicizados, as pessoas de cor, negros, indígenas precisam provar ter algum mérito para serem “aceitos” nessa bolha da branquitude que é quase o mundo inteiro. Mas os não brancos não entram nela como humanos plenos.
Por que tem sido dito que são privilégios? Porque privilégio é um direito ou vantagem que somente um grupo ou individuo possui e que é negado para todos os demais grupos. Há uma série de exemplos cotidianos que revelam as prerrogativas associadas ao simples fato de ser branco sem que se prove nada além disso: o direito de não ser parado pela polícia por fundada suspeita quando se está caminhando pelas ruas; não ser morto em batidas policiais; não ter que enterrar seus filhos em decorrência disso; não ser seguido nos shoppings e lojas e ser revistado por estar em “atitude suspeita”; não ser considerado violento, desonesto, perigoso, preguiçoso, incompetente, desqualificado, sujo, feio, em princípio; não ter sua cultura considerada exótica; não ter seu corpo considerado exótico; não ser considerado pessoa com problemas de saúde mental ou desequilibrada ao mostrar sofrimento por conta da discriminação; não ter que explicar aos filhos que, apesar de tudo isso, mesmo que tudo lhe seja negado, vale a pena ser uma boa pessoa. São vários os exemplos que decorrem desses ou se somam a eles para nos mostrar que é pressuposto que os brancos sejam pessoas normais e os demais grupos não o sejam. Isso é cristalino!
A questão é que isso não é um privilégio. Tudo o que foi apontado acima como um privilégio associado à branquitude nada mais é (ou deveria ser) o que o normal da vida humana. Por isso, o processo de embranquecimento funcionou e ainda funciona. As pessoas não desejam ser brancas porque quererem a brancura estética em si mesma. Elas querem ser brancas porque almejam o direito a uma vida normal e a serem tratadas como humanas.
Assim, o primeiro ponto cego da questão da branquitude e que deveria ser discutido por seus críticos está em considerar que a brancura seja um privilégio. Não é que os brancos tenham privilégios por serem brancos. É que a branquitude define o que é ser humano. E o definiu a sua imagem e semelhança. Esses direitos e condutas foram e são imediatamente associados à brancura. Por isso, todos os outros grupos precisam conquistar e demonstrar humanidade para terem direitos reconhecidos e, nessa lógica, jamais a terão de modo pleno porque jamais serão brancos. Isso foi normalizado e naturalizado. E tudo o que foge disso gera estranhamento, contestação já que foge do “normal”. Isso não significa que as pessoas brancas não tenham que se esforçar na vida ou não tenham problemas ou lutas a travar. Significa que essas pessoas já nascem com uma vantagem que todos os demais precisam conquistar. E mesmo que tenham todos os méritos, nunca terão 100% de reconhecimento.
Não pensem que isso é um exagero retórico. Há textos e mais textos na cultura do ocidente demonstrando que ser humano é ser branco. Os supremacistas brancos vivem nessa realidade de modo absoluto e incontestável. Alguns acreditam até que é um direito dado por deus a eles: o direito de reinar sobre o mundo. Escravidão, extermínios, genocídios têm sido praticados e justificados a partir desses pressupostos.
Mas, outras práticas, aparentemente menos nocivas, também se fazem presentes no cotidiano das vidas tais como o estranhamento que alguns tem ao verificar que poucas pessoas de cor, negras, indígenas em número quase que insignificante entram na bolha da branquitude. Ou seja, passam a ser reconhecidas, ou a terem alguns direitos, mesmo que não como humanos plenos. É essa a crítica que se faz a políticas de cotas e quando algumas pessoas de cor, negras, racializadas e etnicizadas começam a aparecer em lugares antes somente ocupados por brancos.
O estranhamento se dá porque, pela lógica da bolha da branquitude, não sendo brancas, essas pessoas não deveriam ter qualquer reconhecimento, não poderiam ter nenhum milímetro de estima social. Na lógica da branquitude, se essas pessoas têm algum reconhecimento e estima social, deve haver algum problema. E as pessoas da bolha da branquitude passam a buscar o que, para elas, seria “o problema”. Alguns nomeiam “o problema” como racismo reverso, supremacismo negro, coitadismo. De fato, são vários os modos de dizer uma única e mesma coisa: “Negros, pessoas de cor, racializados e etnicizados, escutem! Voces não podem ter qualquer forma de estima social. Voces não são humanos plenos. Nessa bolha da branquitude, somente os brancos são humanos”.
Por isso, nos enganamos ao dizer que se trata de privilégios associados à brancura. No modelo civilizatório no qual vivemos, isso não é um privilégio, é a norma. Os racializados e etnicizados não são desumanizados. De fato, não são considerados humanos. E, nunca poderão ter a humanidade plena já que tê-la é exatamente ter, ao nascer, a priori, os direitos fundamentais que asseguram uma vida sem humilhações, rebaixamentos morais, sem violências, ter o direito a construir uma autoestima e a ser estimado no mundo e na sociedade no qual nasceu e vive. É isso que a branquitude construiu como um direito só seu.
Infelizmente, na bolha da branquitude, há pessoas que entendem que isso é correto. Também há pessoas de todas as cores e raças que aceitam e concordam em ter uma humanidade não plena desde que possam ficar dentro da bolha da branquitude com alguma faísca de reconhecimento. E isso gera um sentimento de falsa proteção que as impede de perceber o que essa bolha é. Tornam-se endorsers da bolha da branquitude.
Para os endorsers, apontar para o que está sendo apresentado aqui é demonizar as pessoas brancas e violar seus direitos. Muitas pessoas de dentro da bolha não conseguem perceber que elas mesmas vivem na e da branquitude, não conseguem enxergar, por exemplo, que são totalmente capazes de práticas racistas e não reconhecem quando algumas das pessoas mais queridas por elas realizam essas práticas. Não querem ver, não querem saber.
Mas a luta não é e nunca foi contra essas pessoas ou contra quaisquer outras pessoas ou mesmo contra ser branco. Nascer branco é uma contingência. Não se pode culpar ninguém por ser branco ou por ser de qualquer outro grupo, raça ou cor. A luta não é contra pessoas brancas. A luta é contra um modelo civilizatório que se tornou hegemônico no qual a brancura é sinônimo de humanidade e no qual somente os brancos têm reconhecida a plenitude de
direitos e a estima social, por nascimento. E, desse lugar de plenitude, se define uma escala de maior ou menor humanidade a partir da proximidade que se estabelece com a branquitude.
Assim, o segundo ponto cego na questão da branquitude sobre o qual precisamos falar é que muitas pessoas brancas (e, infelizmente, também pessoas não brancas) não percebem que fazem de tudo para que a bolha da branquitude não seja destruída. Quem viveu por tanto tempo com o direito exclusivo à humanidade sem que precisasse fazer nada para provar isso, sem que precisasse conquistar isso, deve ter um enorme medo de perder isso tudo. Pode ser como perder a si mesmo.
Mas, há pessoas que não estão na bolha. Também há pessoas que nasceram na bolha ou foram trazidas para ela e que, de dentro da bolha, veem, sentem, percebem que há algo errado e que é preciso transformar o mundo, passo a passo, de seu próprio lugar. E essas pessoas entram na grande luta.
A luta, a grande luta das pessoas de cor, negras, LGBTQIA+, indígenas, grupos racializados, etnicizados tem sido tornar visível outros modos de ser e de viver. Pessoas brancas que enxergam além e fora da bolha da branquitude tem trazido sua contribuição abraçando as causas antirracistas, contra o genocídio dos povos negros e indígenas e por direito à equidade para todos os grupos e pessoas. Não é um caminho fácil, mas é o único caminho para mudar esse padrão civilizatório que exclui da humanidade todos os povos que não sejam caucasianos. Isso não pode ser negociado. Não há concessão a fazer em relação a isso. Temos que divulgar, demonstrar, apresentar e, se necessário, criar parâmetros civilizatórios nos quais ser humano não seja igual a ser branco. Toda e qualquer pessoa que compreenda a extensão desse problema apoiará essa luta.
Temos que mudar os alicerces dessa civilização formando novas gerações de pessoas que compreendam e estimem a diversidade de modos de ser e de viver encontrados em diferentes partes do mundo, em culturas diversas que tiveram e tem algo a ensinar que contribua para ampliar os sentidos de humanidade. Temos que aprender com quem é igual a nós, mas também com quem é diferente de nós. No Brasil, a valorização das culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas é nosso ponto de partida.
Por isso, o tema da diversidade de corpos, culturas, cores, etnias, raças, gêneros e o convívio não violento, sem humilhações, sem subalternizações e hierarquias é fundamental para ampliar nossos horizontes e perspectivas, sentimentos, racionalidades e emoções definindo, compreendendo, vivendo, sendo outras formas de humano.
É isso que precisamos ser, viver e ensinar nas escolas e universidades quando falamos sobre direitos e diversidades se queremos que todos os seres que nasçam sejam, de fato, seres humanos.
*Gislene Aparecida dos Santos é professora da USP. Nasceu e cresceu em uma vizinhança, na periferia de São Paulo, onde brincavam, juntas, crianças brancas, negras e amarelas. Mas, sentiu que não havia igualdade nos primeiros dias de aula, nos anos de 1970, quando uma criança branca, com menos de 7 anos de idade, já sabia que tinha “direitos”. O direito que bradou à professora foi que não queria entrar na sala dando a mão para “uma negrinha”. Nesse período, aprendeu duas coisas que marcaram a sua vida. A primeira é que é ensinado, desde o berço, que a humanidade é branca e tem “direitos”. E o segundo aprendizado foi que o convívio com quem é diferente é essencial para ampliar a compreensão que temos do mundo.
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