Uma bonita história sobre a dor

Leiam Hannah Arendt, especialmente em 2022, porque também foi ela que escreveu: “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime"

Tenho o vício de escrever nas paredes, começou logo quando saí da casa dos meus pais. Noivei e construímos uma casa, daquelas que podíamos construir do jeito que quiséssemos. Tinha uma cozinha que se integrava à sala, porque na minha família cozinha sempre foi lugar de conversa. Tinha dois banheiros, um de azulejos verdes e outro de azulejos azuis, porque sempre achei que o banheiro tinha que lembrar o mar. Só tínhamos um quarto, muito grande, porque eu morria de medo de que, se tivéssemos dois quartos, meu ex-marido passasse todos os dias na porta dele dizendo que deveríamos ocupá-lo com uma criança.

A casa foi toda pensada por nós e nós éramos os donos da casa, mas havia uma coisa que fiz questão que fosse só minha: uma parede grande do corredor do segundo andar, onde eu poderia escrever o que eu quisesse. E escrevi, muito! Morri e ressuscitei várias vezes naquela parede, até que fui embora e a parede ficou. Quando meu ex-marido, anos depois, também resolveu deixar a casa e pintá-la, me enviou por mensagem fotografias da parede toda escrita. Eu achei esse dos gestos mais afetuosos do mundo, nada a menos de se esperar de alguém com quem você dividiu sonhos.

Na minha segunda casa, como já estava sozinha, resolvi escrever nas paredes da sala. E mais, deixava uma caneta por perto para que qualquer visita se sentisse à vontade para escrever. Minha irmã, com uns 6 anos na época, como ainda não sabia escrever bem, desenhou a família e escreveu nossos nomes. Também escreveu a palavra família e todos estávamos debaixo de uma árvore.

A mudança dessa casa foi tão difícil, que me causou um trauma. Uma maldita caneta à óleo e de cor vermelha (!!!) manchou as paredes, logo as da sala, e foi árduo e caro entregar a casa com a pintura no lugar.

Demorei anos e pelo menos quatro casas para encontrar uma solução: escrever nos azulejos do banheiro! É fácil de escrever, fácil de limpar e todo dia estão ali sendo esfregados na sua cara. O que escrevo? Coisas que me dizem, coisas que eu digo, coisas que eu penso, coisas que me pensam, mensagens para o futuro, um passado que insiste em permanecer. A cada seis meses eu fotografo e apago e começo de novo, nunca repito, mesmo que goste muito de algo que está lá escrito. Quer dizer, nunca repetia.

Apaguei em janeiro, mas reescrevi hoje a frase da Hannah Arendt: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.” Escritora, filósofa, judia, nascida na Alemanha e sobrevivente de campo de concentração, fazia todo sentido. Reescrevi porque quando soube da morte de Elza Soares e quis chorar, esta frase me limpou os olhos. E quando li a crônica do historiador e meu colunista angolano preferido, Adriano Mixinge, no Jornal de Angola, esta frase me limpou o coração.

Quando digo histórias, incluo as histórias faladas, histórias cantadas, sussurradas, histórias escritas, histórias contadas, histórias sonhadas. Histórias são o que “adia o fim do mundo”, histórias são o que fica, histórias estancam o sangue, secam as lágrimas, cicatrizam feridas, saram doentes, ressuscitam mortos mesmo três dias depois.

Leiam Hannah Arendt, especialmente em 2022, porque também foi ela que escreveu: “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime.”

Leia também:

Mercúrio está andando de novo

De todas as imagens de Carolina Maria de Jesus, a minha preferida é a do aeroporto

O que DJ Ivis e Liziane Gutierrez têm em comum

+ sobre o tema

França inicia investigação sobre burca

França inicia investigação sobre burca. Fonte: Folha de São Paulo...

‘Esquerda e direita brasileira são inábeis em incorporar o debate sobre o racismo’

As manifestações antirracismo que tomaram conta do mundo desde...

A morte do leão Cecil e as mortes anônimas do Brasil

A imagem do leão Cecil, abatido no Zimbábue pelo...

Vítima de racismo em restaurante do DF será indenizada por danos morais

Um homem que sofreu racismo no restaurante comunitário de...

para lembrar

Vídeo de Covas contra a redução da maioridade ganha as redes

“Que país é esse aqui que, para reduzir a...

Na luta por representatividade, negros são 3% dos candidatos às prefeituras do RS

Dos 1.352 candidatos e candidatas a prefeituras nos 497...

Policial que descobriu ser negro aos 47 anos e sofre comentários racistas de seus colegas

Um sargento da polícia de Hastings (Michigan) pede meio...
spot_imgspot_img

Lições de racismo

Lições de racismo não integram formalmente o currículo escolar, mas estão presentes na prática pedagógica nacional. Prova disso é que a escola costuma servir de palco...

Por um Moçambique mais igualitário

Ouvir uma antropóloga feminista moçambicana sobre os protestos em seu país me levou ao Brasil de 2013: demandas populares legítimas reprimidas violentamente pelo Estado e...

A COP29 fracassou no país com a paisagem de poços de petróleo

Ufa! Agora posso dizer que tive a sensação de que não íamos avançar no Azerbaijão. Talvez essa percepção tenha me atravessado de forma objetiva...
-+=