País tem 282 denúncias ao dia de violações a crianças e adolescentes

Enviado por / FonteO Globo, por Bruno Alfano

Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos registrou 25 mil casos entre abril e junho, sendo a maior parte ligada a maus tratos; para especialistas, dados são subnotificados

O Brasil registrou, nos primeiros seis meses de 2021, uma média de 282 denúncias de crimes contra crianças e adolescentes por dia, segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH). A maior parte delas (121) é de maus-tratos, e 52 são de abuso sexual, como estupro ou assédio. E o cenário pode ser ainda pior: para especialistas, os dados oficiais são subnotificados.

Desde que a pandemia começou, em março de 2020, o número de denúncias caiu de 29 mil no primeiro trimestre para 20 mil nos últimos três meses do ano. Em 2021, voltaram a subir, e atingiram 25 mil entre abril e junho.

— Isso não significa que o número de violações caiu em 2020. Os registros é que diminuíram, por causa do isolamento social. Em 2021, mais serviços voltaram a funcionar presencialmente, e isso reflete o novo aumento — afirma Marta Volpi, assessora de políticas públicas da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente.

Foto: Editoria de Arte/O Globo
Foto: Editoria de Arte/O Globo
Foto: Editoria de Arte/O Globo

Durante a pandemia, o isolamento social — cientificamente reconhecido como indispensável para impedir a transmissão de Covid-19 — dificultou muito as denúncias de violações contra crianças e adolescentes. Isso porque 80% dos casos acontecem dentro da casa da vítima, e 65% dos suspeitos são os próprios pais, mães, padrastos ou madrastas — o que deixou as violações escondidas no âmbito familiar dos agressores e suas vítimas.

Para piorar, em 2020, diferentes instituições públicas que funcionam na rede de proteção das crianças ficaram fechadas funcionando remotamente. A principal delas, segundo a psicóloga e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) Iolete Ribeiro, foi a escola.

— Em 2021, já há algum retorno de muitas escolas e serviços que passaram ao presencial em alguns períodos. Isso dá maior acessibilidade aos casos. A criança fala com o professor ou os educadores detectam uma mudança de comportamento e ficam alertas para acionar a rede de proteção e descobrir o que está acontecendo.

Levantamento de O GLOBO feito nos cem primeiros dias letivos deste ano (de 8 de fevereiro a 28 de junho), mostra que 18 redes estaduais de ensino ficaram 100% do tempo em ensino remoto. Duas delas estiveram 11% do tempo abertas, cinco ficaram entre 20% e 50% abertas e duas (São Paulo e Santa Catarina) abriram desde o começo do ano e não voltaram ao remoto em nenhum momento.

Pouco antes da pandemia, uma menina de 12 anos entendeu que vinha sendo estuprada por seu pai nos últimos dois anos a partir de uma palestra sobre o assunto.

— A criança não percebia que era vítima de abuso sexual. Não sabia que aquilo que acontecia com ela era estupro. Só soube quando viu uma profissional falando sobre isso na escola — diz Clayse Moreira, coordenadora técnica do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no Rio de Janeiro.

No dia da palestra, logo após chegar em casa, a menina apresentou muito medo de ficar sozinha com o pai. A mãe percebeu algo estranho, e a criança contou que ela e a irmã, de 10 anos, eram abusadas.

— Esse caso só veio à tona porque havia a escola. E violações como essa continuam ocorrendo, mas ninguém está sabendo. A rede pública precisa encontrar estratégias para garantir a proteção dos alunos — afirma Moreira.

No entanto, de acordo com Denise Campos, coordenadora do Cedeca Rondônia e autora do artigo “Exploração sexual de crianças e adolescentes: reflexão sobre o papel da escola”, a visão do atual comando do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos desestimula atividades como a que abriu os olhos da criança de 12 anos.

— A posição do ministério é a de que não é para falar disso, que é questão de família. Mas na medida que a escola não trabalha isso, acaba colocando a criança em mais risco ainda — afirma Campos.

Risco no ambiente virtual

Na avaliação de Marta Volpi, um professor conseguir identificar e denunciar situações de violência por meio das aulas remotas, levando em consideração a desigualdade de acesso à internet, é quase impossível.

Pesquisa divulgada em março pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) mostra que o ensino remoto no Brasil foi, majoritariamente, a combinação de aulas por WhatsApp com materiais impressos, nos quais os professores tinham pouco ou nenhum contato com seus estudantes.

— Quando a pandemia acabar e as pessoas voltarem às suas atividades normais, a gente precisa de muita campanha para reforçar a importância das denúncias e a atenção nas crianças e adolescentes que podem ter vivido violações nesse período — diz Volpi.

Os dados da ONDH mostram ainda que o número de violações no ambiente virtual cresceu 80% durante a pandemia. E, das 1.277 denúncias relacionadas à internet em 2021, 623 envolvem crimes sexuais, e outras 382, exposição erótica de crianças.

Enquanto isso, as violações em via pública caíram 45%, e aquelas realizadas em instituições de ensino, 63%. Considerando apenas os casos de crimes sexuais (estupro, abuso sexual, exploração sexual, abuso sexual psíquico e assédio sexual), caíram de 89 entre janeiro e março de 2020 para 7 nos últimos três meses do ano.

+ sobre o tema

7 de fevereiro marca luta de povos indígenas por existência e direitos

Desde a invasão portuguesa e europeia ao território que...

Pandemia encontrou Brasil despreparado e deve agravar desigualdade social, afirma ONU

Relatório inédito divulgado nesta quarta-feira (29) pela Organização das...

Cimi: está acontecendo um verdadeiro genocídio de indígenas no Brasil

Conselho Indigenista Missionário (Cimi) divulgou um relatório segundo qual,...

Zara se recusou a assinar acordo com ministério público sobre trabalho escravo

A grife espanhola Zara se recusou ontem (30) a...

para lembrar

Por que a justiça não pune os ricos

    Maria Aparecida evita olhar para sua...

Rapper Prodigy, do Mobb Deep, morre aos 42 anos por complicações decorrentes de anemia falciforme

Albert Johnson estava hospitalizado há dias por problemas causados...

Trabalho análogo ao escravo persiste em lavouras de café brasileiras, aponta estudo

O trabalho análogo ao escravo em lavouras de café...
spot_imgspot_img

Mais de 335 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil

O número de pessoas vivendo em situação de rua em todo o Brasil registradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico) do governo federal,...

Geledés participou do Fórum dos Países da América Latina e Caribe

A urgência da justiça racial como elemento central da Agenda 2030 e do Pacto para o Futuro, em um ano especialmente estratégico para a...

Na ONU, Anielle Franco diz que reparação pela escravidão é ‘inegociável’

A ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, defendeu na ONU, nesta segunda-feira, a ideia de uma reparação diante dos crimes contra a humanidade cometidos...
-+=