Para bell hooks, eu preciso contar sobre mim

FONTEPor Rosemeri da Silva Madrid¹, enviado ao Portal Geledés
bell hooks (Foto: Karjean Levine / Getty Images)

É chegado o tempo de esperançar, é chegado o tempo de florir como a planta que se espreme entre as brechas do asfalto e ressurge à procura do sol. Por vias não diretas, chega até mim o convite, o chamado para escrever á ti, bell hooks pensando em um casamento entre a narrativa das experiências vividas no enfrentamento dos desafios que este mundo louco nos apresenta, e ainda celebrar a tua vida e tua obra, hooks.

Como dizer não a uma proposta assim? Como seguir tocando o cotidiano tão adverso, sem parar e fazer o processo reflexivo, teórico e de enunciação de tanta potência quanto a que nos legaste através de tuas escritas (ou escrevivências?), tuas falas em tantos e tantos vídeos disponíveis na web, que nos ensinam, mostrando caminhos, possibilidades?

Aceito o convite, te escrevo bell, a principio para te contar sobre mim, minha caminhada, meu desaforo ao me aventurar num terreno tão inóspito que é a ciência, a academia, espaço que vem sendo nos negado há gerações, te contar sobre o que tenho pesquisado, procurando com isso não apenas o meu crescimento pessoal, profissional mas tentando com minha experiência, servir de farol para que outras que venham depois de mim, logo ali, também “desaforem” estes espaços tão europeizados, reservados aos filhos e filhas da Casa Grande. Não saberia dizer se essa prática, de ir chegando nestes espaços, dando braçadas para vencer a (s) resistência (s) possa ser lida como uma caminhada da margem ao centro, como nos disseste, uma vez que o movimento de centro é ocupado por outras mulheres, cujas lutas não são as nossas, onde outros vetores de exclusão não são compreendidos (hooks, 2019).

Assim como nos falaste, bell, a escrita a partir do lugar da experiência concreta, sobre situações que nos rodeiam, permitem a melhor compreensão e prática do feminismo, facilitando o entendimento à todos, das políticas feministas. Quanto a isso, percebo que em nossas experiências cotidianas, movimentamos o feminismo na prática, em nosso viver, em nossas estratégias de ser e estar no mundo.

Mas primeiro, sinto que preciso me apresentar para que possamos continuar conversando, para que esse “andar juntas” possa fazer algum sentido, não perdendo de vista o que tens nos ensinado ao longo da tua caminhada. Cresci na periferia, mais velha de três irmãos, numa casinha de madeira com poucos cômodos, meus pais trabalhavam muito e nos víamos pouco, minha mãe era auxiliar de serviços gerais em dois empregos, chegava cansada, tínhamos que fazer silêncio para que ela pudesse descansar um pouco. Ficavámos, eu e meus irmãos, sob os cuidados da nossa vó materna, ela que ela lavadeira, num tempo em que as máquinas de lavar ainda não eram comuns nas casas. Lembro da chegada dos carros das “patroas” trazendo trouxas e mais trouxas de roupas, que eram lavadas no tanque que tínhamos no pátio, colocadas para cuarar², num processo artesanal e cuidadoso de deixar as peças brancas, sem encardume. E ainda as pilhas e pilhas de roupas que eram passadas à ferro em brasa, com todo o cuidado.

Todas estas memórias estão em mim e ajudaram a forjar quem me tornei, lembro da minha vó enfatizando a importância do estudo, para que eu não repetisse na minha vida adulta, o destino de servir as patroas. Essas memórias estão tão fortes em mim que escrevi uma “Carta para minha Vó”³, publicada no Portal Geledès em 2021, num momento do doutorado que eu estava bem emotiva. Foi justamente essa emoção que me trouxe até aqui, para que contar, hooks que consegui vencer o destino que a Casa Grande tinha reservado pra mim, não repeti o que historicamente vinha acontecendo, servir as patroas, mas sim ir abrindo espaço, ganhando terreno, primeiro na graduação, depois aos poucos, vencendo os desafios da especialização até chegar ao doutorado em uma das maiores instituições aqui no Sul no país.

O ESPERANÇAR É PRECISO

E é aqui que a emoção bate forte, hooks.  Pensar em toda caminhada que percorri até aqui, desde a graduação em uma idade cronológica mais madura, com filho de apenas um ano para cuidar, equilibrando os pratinhos como fazem os artistas circenses para dar conta de tantas demandas. E consegui, conclui a graduação, trilhei pela especialização, mestrado e agora, doutoranda num PPG interdisciplinar, humano, includente, fruto de políticas públicas no sistema de ensino superior, hoje tão atacadas pelo governo que aí está. Sim, incomodamos nós mulheres negras, fomos abrindo espaço, escancarando portas que por muitas gerações foram fechadas para nós, como tu mesma nos conta no teu livro “Ensinando a transgredir”, ao dizer que aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra-hegemônico, “um modo fundamental de resistir a todas estratégias brancas de colonização racista”(hooks, p. 10, 2017).

Atualmente pesquiso as vivências das mulheres negras em território rural de fronteira, ajustando a lupa sobre essas vidas tão ricas de saberes, numa localidade rural que fica na campanha gaúcha (ao Sul do Brasil), próximo a divisa entre dois países, Uruguai e Brasil. É também uma escrita atravessada pela resistência, numa cidade interiorana conservadora, onde meu lugar não seria esse e sim, trabalhando em alguma casa de família ou atrás de um balcão. Resistimos!

Essa mesma resistência vem da ressignificação do feminismo que incorporamos em nossas vidas, que praticamos sem nos darmos conta, pelo próprio existir no mundo e ocupar espaços que nos foram negados por tanto tempo. Precisava de contar sobre mim, hooks, para que eu celebre tua jornada, tua escrita e tua influência sobre meu processo de amadurecimento, sobre o meu olhar a partir da perspectiva negra, de mulher, de acadêmica, me dando forças nesse existir no mundo. Por que esperançar é preciso, só a esperança e o seguir em frente (enfrente) pode nos transformar em agentes de transformação social no mundo.


¹  Doutoranda em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGDR/UFRGS). E-mail: rosemeri.madrid@gmail.com 

²  O ato de quarar uma roupa é um processo antigo e tradicional, vem dos saberes passados de geração a geração, que consistem em deixar as roupas de molho, com sabão, ao sol, para que as manchas saiam e que as peças na cor branca mantenham a alvidez.

³  https://www.geledes.org.br/carta-para-minha-vo/ Acesso em 11 de outubro de 2022.


REFERÊNCIAS

hooks, bell. Teoria Feminista: da margem ao centro. São Paulo, Perspectiva. 2019.

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro. Rosa dos Tempos, 2020.

Hooks, bell. Ensinando a transgredir: A educação como o prática de liberdade. São Paulo. Martins Fontes, 2017.  MADRID, Rosemeri da Silva. Carta para minha vó. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/carta-para-minha-vo/  Acesso em 11 de outubro de 2022.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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