O que há em comum nas diversas coletâneas de história da historiografia brasileira – campo que trata dos modos pelos quais historiadores e historiadoras construíram a memória da disciplina História – que foram formuladas até o tempo presente? Ao folhearmos algumas delas, publicadas nos últimos 20 anos, tais como Historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira, História e Historiadores no Brasil (3 volumes), Identidades do Brasil (3 volumes), Uma introdução à história da historiografia brasileira ou Os Historiadores: clássicos da História do Brasil, constatamos que a historiografia brasileira contemporânea foi construída por “mãos brancas”, num verdadeiro “padrão sueco” imposto em nossa memória disciplinar.
Se fizéssemos um exercício parecido em coletâneas de “Pensadores”, “Intelectuais” ou “Intérpretes/Interpretações do Brasil” (como já fiz em outro momento), acharíamos algo muito similar: uma geopolítica do conhecimento fundada num falso universalismo do Homem branco, europeu e heteronormativo. Ou seja, os processos de produção e circulação do conhecimento – que resulta na produção de cânones – não se concretiza meramente por uma transmissão neutra e imparcial; mas é resultado de escolhas hierarquizadas e localizadas desde geografias (Europa) e corporeidades (o homem branco heterossexual). É nesta construção da falsa universalidade dos homens brancos ocidentais que residem todos os sentidos de um conhecimento geolocalizado, o qual foi fundado desde meados do século XV e que enraizou-se desde o Norte Global. Em vista disso, duas questões se colocam aqui: qual operação historiográfica ou intelectual faz com que o cânone seja construído sobre as bases desse saber tão unidimensional? E o que reafirma esse caráter propriamente identitário que é negado na História da Historiografia?
Uma possível explicação reside na origem desses cânones intelectuais como expressão de processos de racialização, que estiveram em curso no mundo desde, pelo menos, o “longo século XVI” (1450-1650). No texto A violência, por exemplo, Frantz Fanon destacou as transformações do racismo/colonialismo: de uma forma implicitamente coercitiva, fundada no domínio puro e simples, para tipos de relação/dominação mais consensuais. Entretanto, a verdade é que desde os primórdios da Modernidade, a racialização foi usada e imposta como uma verdadeira tecnologia de poder que formou linhas e hierarquias, nem tão invisíveis, entre quem poderia ser “humano” e aqueles taxados numa condição de “não-humanidade”.
Essas linhas não foram organizadas somente por um processo de inocência estrutural branca, mas também por meio de um investimento ativo das elites brancas (europeias e de seus descendentes – diretos ou indiretos – que se espalharam pelo mundo). Este investimento e suas projeções estiveram, por exemplo, na base da formação ocidental das universidades. Enquanto campos culturais e intelectuais, as universidades não foram só testemunhas da barbárie genocida contra povos indígenas e negros, mas elas também foram uma parte constitutiva da estrutura simbólica do Ocidente que recriou os “outros” por meio do epistemicídio sistemático de seus saberes e existências. As formas de classificação e hierarquização das diferenças socioculturais, inventadas desde o século XVI e atualizadas até a contemporaneidade (que (re)produziram o “infiel”, o “bárbaro”, o “selvagem”, o “atrasado”, o “incivilizado” etc.), fomentaram um tipo de conhecimento fortemente racializado, que tem como consequência a produção de uma ontoepistemologia – para usar a expressão cunhada pela filósofa carioca Denise Ferreira da Silva. E o que seria isso? Em linhas gerais, consiste em uma reflexão sobre o conhecimento e os seus limites, tendo como um padrão de referência as normas brancas hegemonicamente definidas e aceitas na sociedade.
O filósofo afro-americano Charles S. Mills, ao analisar o cânone do pensamento filosófico anglo-saxão, considera que esses padrões de referenciação à norma branca têm efeitos profundos na formação do que o autor conceptualiza como uma epistemologia da ignorância. Tal campo de saberes produz, para Mills, um conhecimento extremamente racializado, que nega as suas próprias origens e (re)cria fundamentos – em sua cegueira da diversidade –, para efetuar a exclusão e o genocídio dos “outros” dentro do sistema de mundo do colonialismo/racismo.
A disciplina História, formatada nas academias e institutos europeus no século XIX, assim como as suas correspondentes nas Américas e outros espaços do Sul Global, foi protagonista no processo que podemos resumir enquanto uma sincronização dos tempos (alocronismo) – junto da própria Antropologia –, tendo como padrão de referências o molde europeu. Essa sincronização objetiva contou com o uso de categorias como “atraso”, “progresso” e “civilização” para inventar, por exemplo, a noção de “povos na antessala da História”. Ou seja, sociedades que estariam sempre à espera do dito “salvador branco”, que iria resgatá-las de sua “inautenticidade” – noção que pode ser exemplificada com expressões racistas como “tribo do iphone” e outras.
No Brasil, instituições como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o Colégio Pedro II, entre outras, foram essenciais para a produção, reprodução e enraizamento generalizado dessa ontoepistemologia branca. Para a intelectualidade negra nesse país restava o “limbo” de não serem vistos como produtores de conhecimento especializado. Uma máxima que tem sido fortemente questionada e revisitada nos últimos anos, por ativistas, cientistas sociais e historiadores negros e negras. Apesar das mudanças do conhecimento fundado na visão de mundo eurocêntrica, ligada às elites brancas, há ainda a perpetuação de uma ignorância racializada que se mantém como uma verdadeira tecnologia de poder/saber para o contínuo apagamento das pessoas negras e indígenas enquanto propositores de leituras e interpretações sobre a memória disciplinar da História.
A reprodução dessa memória disciplinar racializada no cerne da história da historiografia é sintoma do sucesso do investimento maciço em uma epistemologia que ignora a pluralidade dos agentes produtores de conhecimento histórico e de suas contínuas revisões. O que pode explicar o fato de que disciplinas voltadas para a própria reflexão disciplinar, como é o caso da História da Historiografia ou da Teoria da História, sejam ainda avessas à chamada questão racial? Óbvio que não é apenas uma questão de “raça”, e muito menos do negro ou do indígena por si, posto que este apagamento também tem presença na dimensão de gêneros e sexualidades.
A verdade é que o cânone como tecnologia de poder/saber, expressão da racialização, ao apagar a corporeidade do conhecimento (as mãos que o escrevem), tem como função primária a afirmação da branquitude nos campos culturais e intelectuais – das universidades a sociedade como um todo. Isso significa um exercício sistemático de poder, visto que a branquitude não deve ser definida somente nas subjetividades, mas também nos lugares ocupados: de grupos que estão hegemonicamente nas cadeiras das disciplinas acadêmicas, que constituem as ementas de cursos, que orientam alunos/as e organizam os eventos científicos. Sob as vestes do “cânone”, este conjunto de ações produzem uma ignorância branca, que resulta na ideia de uma memória disciplinar homogênea construída por/para homens brancos, os quais não questionam esse lugar propriamente identitário ocupado (e perpetuado) por eles.
Em contraponto a esse processo de consagração de cânones, propomos uma ética da historicidade voltada para o reconhecimento da diversidade de vozes e epistemologias dentro da memória disciplinar da História, que consiga rever os princípios e formas que estabeleceram a ignorância branca na historiografia brasileira, por exemplo. Para tanto, é insuficiente a mera inserção de negros/as, indígenas e outros não-brancos na representação dos cânones, sendo necessária a sua participação ativa nesses processos de revisão disciplinar. Certamente, as ações e esforços da Rede de HistoriadorXs NegrXs têm avançado para a superação da ideia do “negro-objeto” em campos temáticos como do pós-abolição. Entretanto, ainda temos muito o que avançar em outros eixos, como no âmbito da História da Historiografia e da Teoria da História. Precisamos nos apossar cada vez mais desses campos, a fim de reconstruir a memória disciplinar da História no Brasil sobre bases mais plurais e interculturais. Só assim vamos conseguir superar anos de descaso e silenciamento das epistemologias negras!
Assista ao vídeo do historiador Marcello Felisberto Morais de Assunção no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF06HI02 (6º ano: Identificar a gênese da produção do saber histórico e analisar o significado das fontes que originaram determinadas formas de registro em sociedades e épocas distintas); EF07HI01 (7º ano: Explicar o significado de “modernidade” e suas lógicas de inclusão e exclusão, com base em uma concepção europeia).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos).
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