Pretos e Mulatos em Clubes Sociais Negros num Pedacinho da Europa no Brasil

Pedro Victorino era um antigo sócio da Sociedade Recreativa União Operária, que reunia pessoas negras – ou melhor homens de cor, como se dizia na época – da cidade de Laguna, Santa Catarina. Em 1906, já não frequentava as atividades da associação, por isso resolveu se desligar e pagar a dívida que tinha, que ele acreditou ser de 13 mil réis. Porém, a direção lhe cobrou 17 mil réis. Discordando do valor do débito pendente, não fez o pagamento. A direção da entidade, então, tornou pública a pendência e Pedro resolveu responder publicando no jornal local, O Albor, na edição de 24 de agosto de 1906, uma carta aberta contra os dirigentes da “União Operária”. Magoado e ressentido, exclamava que o nome apropriado para a agremiação deveria ser “desunião operária”, que aquela era mais uma das “sociedades de encantos” que cresciam “só no calor do entusiasmo” para, depois, encerrar nas mãos de um proprietário. Ou seja, para ele, havia uma concentração de poder nas mãos de uns poucos sujeitos, o que acabaria com a ideia de coletividade da agremiação. Além disso, insinuava que seus diretores se apropriaram indevidamente de recursos.

Victorino já estava descontente com os rumos da “União Operária” antes de sua dívida ter sido exposta no periódico da cidade. Ele frequentava o Clube Literário Cruz e Souza, fundado em junho daquele mesmo ano de 1906 por homens de cor, provavelmente também descontentes com a outra agremiação. Nas atas de reuniões e encontros do Clube Literário Cruz e Souza, por exemplo, é possível encontrar nomes de sócios e/ou ex-sócios da Sociedade Recreativa União Operária. Além disso, Pedro Victorino diz que o clube literário foi fundado por causa dos rumos da sociedade recreativa. 

Situações de rompimentos e fundações de novas agremiações fazem parte da história do associativismo de um modo geral. Nos casos aqui destacados, o que chama a atenção é a existência de organizações de afrodescendentes na região sul de Santa Catarina, estado exaltado como um “pedacinho da Europa”, segundo Ilka Boaventura Leite. É verdade que muitos estudos históricos já fizeram críticas a esse pensamento, demonstrando a presença de populações de origem africana na região. No entanto, ainda é comum o apagamento da presença e das contribuições das populações negras em muitas cidades catarinenses. Como sugeriu Karl Monsma, para o caso do interior paulista, há situações em alguns municípios em que seus livros de História, tidos como oficiais, e seus setores de turismo reduziram ou eliminaram as contribuições de populações não europeias e, por conta disso, várias cidades que receberam grande massa de estrangeiros hoje são conhecidas como típicas de uma ou mais colônias estrangeiras. Dessa forma, é importante a produção de estudos que dão visibilidade às populações afrodescendentes em localidades onde houve um processo de apagamento da sua presença e de suas contribuições. 

Há algum tempo venho me dedicando ao estudo da história dos clubes sociais negros em Santa Catarina. Em outra oportunidade, pesquisei o Clube União Operária da cidade de Criciúma, associação construída por afrodescendentes na década de 1930. A história desse clube me estimulou a procurar outras sociedades recreativas com semelhante afirmação de pertencimento racial na região. Pesquisando sobre isso, deparei-me com a história da sociedade chamada Clube União Operária, na cidade de Laguna. Interessante é o fato de que alguns desses clubes ainda estão em funcionamento. 

Procurei alguns dos seus antigos sócios no intuito de conhecer mais as histórias desses espaços. Um desses sócios foi um senhor muito simpático, com quase 90 anos de idade. Seu Cacique, como é popularmente conhecido, é o apelido de Antônio dos Reis, antigo maestro da banda “União dos Artistas” e sócio da “União Operária”.

Ele me contou como era participar da vida dos clubes negros de Laguna, destacou as profissões dos sócios da União Operária e que houve outro clube construído por afrodescendentes. No desenrolar da conversa, contou-me que o “União Operária” era um clube de “mulatos”, enquanto o “Clube Literário Cruz e Souza” era de “pretos”. Uma informação interessante e instigante! Resolvi, então, conhecer mais sobre esse sentido de se marcar a diferença. 

Logo de início, a história contada pelo seu Cacique demonstrou que não devemos olhar sujeitos negros como um bloco homogêneo. Serem descendentes de africanos e sofrerem com o racismo não eram fatores suficientes para apagar suas individualidades e diferenças. No limite, é possível que cada associação de afrodescendente correspondesse às expectativas de seu grupo. Suas autoidentificações, que me levaram a estudar raça enquanto fruto de um processo histórico, recuperam uma dinâmica cercada de disputas. Sobre o processo de racialização ver: Wlamyra Albuquerque, Karl Monsma, Liv Sovik, Ygor Olinto R. Cavalcante e Tenner Inauhini Abreu

Através de entrevistas com sócios e descendentes antigos desses clubes, pude perceber que a diferença de identificação de afrodescendentes fazia parte de um jogo desses sujeitos, visando qualificar seu grupo e desqualificar o outro, especificamente, apresentar os sócios da Sociedade Recreativa União Operária como grupo mais abastado. Em ambos os casos, havia tentativas de fugir da classificação racial negra, carregada de estereótipo e estigma. Ou seja, uma prática para escapar de discriminações raciais e se aproximar do reconhecimento de sua cidadania. 

Nas entrevistas que fiz para minha pesquisa de mestrado e que hoje se encontram em meu livro (ROSA, 2019), ouvi comentários de que o “União Operária” “sempre foi um clube da elite negra da Laguna, a verdade é essa! (…) não era qualquer negro que entrava no Operária”. Ou ainda: “Agora o União Operária já era diferente. […] As pessoas além de serem um pouquinho mais abastadas né, assim numa melhor situação financeira, eram mais claras, então se julgavam superiores aos outros, coisa triste né, mais fazer o quê?”. Há depoimentos em que outros detalhes aparecem:

“A Operária era mais frequentada pelos mulatos claros, mais pardos. […] Além da cor, nem todos tinham as condições financeiras de frequentar o Operária. É que geralmente, […] o preto mais pobre era aquele que morava na periferia. Eram pintores, carpinteiros, não podiam frequentar uma sociedade, financeiramente falando.”

No entanto, essas diferenças não são tão evidentes quando se analisa o livro de registro de sócios e a ata de fundação das duas sociedades. Encontrei nos registros produzidos pela “União Operária” sócios que tinham como profissão pedreiro, pescador e pintor, que seriam na visão de meus depoentes pobres. Havia, de fato, pessoas com profissões de mais prestígio, como comerciantes, professores e funcionários públicos, o que indica certa heterogeneidade entre os sócios. Houve ainda situações de dupla associação, pessoas consideradas mulatas pelos entrevistados, que fizeram parte da “União Operária” e do “Cruz e Souza”, ocupando, até mesmo, cargos de diretoria. Somente uma depoente disse que tinha pretos na “União Operária”. Seriam “uns pretos posudos, de classe média!”. Pode ser que a sociedade fosse rígida na questão do acesso, conforme me foi narrado pela maioria dos entrevistados, ou que essa maioria identificava automaticamente como mulato um associado da “União Operária”, como se fossem sinônimos, reforçando sua narrativa. 

É importante observar que a memória pode ser usada por uma pessoa ou grupo de pessoas para se defender e/ou reafirmar posições. Neste sentido, quando esses depoentes me diziam que os mulatos da “União Operária” eram a elite afrodescendente de Laguna, eu também entendia que aquilo fazia parte da construção e da reconstrução de memórias. Esses entrevistados, sendo filhos, bisnetos e frequentadores daquela agremiação, talvez, desejassem manter um status, conferido a seus pais e a eles próprios, por isso ocultam, inventam e/ou modificam, de forma consciente ou não, suas lembranças.

Destaco ainda que entre os pretos também encontrei falas de orgulho e valorização de si. Um depoente afirmou: “Eu andei bem vestido toda a vida. Não tinha inveja de ninguém, nem de branco e nem de mulato”. Outra disse-me: “Os bailes dos pretos sempre diziam que era mais animado do que os da União Operária. Mais animado era dos pretos! Era!”. Tudo parece indicar que as disputas pelos melhores festejos aconteciam nos bailes cotidianos e nas celebrações religiosas. Os pretos organizavam as homenagens à Nossa Senhora da Conceição, enquanto os mulatos à Nossa Senhora do Parto. Cada grupo cuidava do altar de sua santa de devoção na igreja da cidade. 

Os vestígios sobre o quadro profissional contribuíram para desconstrução da ideia de que, após a abolição da escravatura, as populações afrodescendentes estavam despreparadas para o mundo do trabalho, o que justificaria as desigualdades raciais. Eles indicam mobilidade social, permitem abordagens para além da miserabilidade negra. Muitos fatores contribuíram para colocá-las em situação de desvantagem em relação aos brancos nacionais e aos imigrantes europeus, que tiveram acessos a bens culturais e materiais. É preciso sempre lembrar que, de diferentes maneiras, as pessoas afrodescendentes tiveram direitos tolhidos. De fato, a história dessas duas associações faz parte desse processo. Elas existiram porque pessoas negras, fossem “pretas” ou “mulatas”, não podiam frequentar outros espaços recreativos. Assim, fundaram seus espaços para garantir seus direitos a lazer, saúde, ajuda, entre outras. Ao mesmo tempo, agiam e se apresentavam nessa sociedade para além da visão negativa reservada às populações negras, criando imagens positivas de si. 

A Sociedade Recreativa União Operária e o Clube Literário Cruz e Souza foram espaços autônomos, onde os frequentadores procuraram viver e com eles se relacionavam de acordo com seus interesses. As relações entre os seus associados não estavam isentas de conflitos, contradições, afastamentos e adesões. Sendo assim, suas experiências servem para evidenciar essas características entre as populações afrodescendentes de um modo geral. Esses dois clubes sociais negros no chamado pedacinho da Europa no Brasil foram (e são) ambiente de trocas culturais importantes para os afrodescendentes de Laguna. Favoreceram a construção de autoestima, a formação de famílias, a ascensão social, a luta por cidadania, visibilidade e respeitabilidade na tentativa cotidiana de desconstruir estereótipos disseminados sobre os negros. Ao (re)centralizar o legado de organização negra em Laguna, este artigo se configura como parte dos esforços de historiadores/as negros/as e antirracistas para tornar visível a presença de afrodescendentes em Santa Catarina, região Sul do Brasil. 

Assista ao vídeo do historiador Júlio César da Rosa no Acervo Cultne: 

Nossas histórias na sala de aula

O conteúdo desse texto atende ao conteúdo previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF09HI01 (9° ano: Descrever e contextualizar os principais aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos da emergência da República no Brasil); EF09HI03 (9° ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9° ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI05 (9° ano: Identificar os processos de urbanização e modernização da sociedade brasileira e avaliar suas contradições e impactos na região em que vive).

Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); M13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência – física, simbólica, psicológica etc. –, suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos); EM13CHS601 (Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país).

Júlio César da Rosa 

Professor da rede estadual de Santa Catarina e municipal de Criciúma.  Mestre em História – UDESC e doutorando em História pela UNISINOS-RS. E-mail: [email protected]. Instagram: @JuliusdaRosa.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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