Pitanga, um negro em movimento

Gún é uma expressão em iorubá que resume a sensação de alegria transcendente, êxtase que percorre os poros e alimenta a alma, energia que movimenta a vida, enleva. Eleva. É desta matéria que é feito Pitanga, o documentário cuidadosamente desenhado pelas lentes e olhos de Beto Brant e Camila Pitanga.

por Larissa Ibúmi Moreira no Huff Post

E é essa a sensação que ele nos transmite, reconhecível em cada brilho no olhar de quem se levantou da poltrona ao ascender das luzes na sala de cinema, naquele sorriso largo que o próprio homenageado nos contagiou, fruto de sua magia. Antônio Pitanga, o “capoeirista mental”, nos amarra na roda.

Mandingueiro de essência nos enreda entre memórias de sua vida e da passagem de seus personagens. Ator e personagem imbrincados de tal modo que, enquanto um cita os Panteras Negras, o outro – o da película – é forjado num próprio Malcolm X à brasileira, construindo um lugar e uma voz de protagonismo para o negro no cinema.

De operário à Cristo, Antônio, nosso cavaleiro de Ogum, abriu caminhos para o Cinema Novo. De seu primeiro personagem em “A Bahia de Todos os Santos” (Trigueirinho Neto, 1960) herdou o Pitanga, sobrenome que adotou como seu, e o primeiro encontro com Glauber Rocha, quem lhe aconselhou “quer ser ator, faça teatro”. Era a grande chance para o menino baiano de origem pobre que sempre viu o palco de longe, pelas grades, proibido pelas mãos fortes do racismo de entrar nas grandes casas de teatro.

“Trabalhando sempre com os contragolpes”, é o que diz Pitanga – aprendiz de mestre Pastinha – que foi de figurante a um grande herói das telas e da vida. O combatente que dança, segundo Camila Pitanga. Aquele que se posicionou para que seus papéis não refletissem a história de submissão reservada aos personagens negros no cinema e na TV, ao mesmo tempo em que assumiu sozinho a criação dos dois filhos (certamente inspirado na força que herdou de sua mãe, Dona Natividade), legando-os a mesma consciência racial. Ele arremata, em certo momento do doc, afirmando não estar atrelado a nenhum movimento e sim ser um negro em movimento.

Mas o doc Pitanga não é apenas político, o que, aliás, permeia de forma natural a narrativa, ao passo que a trajetória do ator é contada em conversas bem-humoradas e sedutoras com grandes figuras que marcaram sua carreira. É, sobretudo, o registro de um grande griot que a certa altura da vida revisitou a sua África “interna”, viva dentro de si, numa viagem ao continente e em missões culturais. A busca pela ancestralidade não se trata apenas de um resgate, mas de um fluxo e refluxo contínuos. Não à toa, a primeira cena traz sua história com o terreiro de Mãe Menininha, para mais a frente levar-nos a um momento de missa na Igreja do Rosário dos Homens Pretos.

Pitanga ainda abre caminhos. Diz que vai voltar à Salvador para filmar a história da Revolta dos Malês, com a importância de se manter viva a memória dos que se rebelaram contra a opressão escravista e a necessidade de ultrapassar o paradigma do negro passivo da escravidão. Acrescento, a meu ver, a relevância histórica de apresentar ao público a realidade da escravidão urbana de Salvador. A história agradece.

E o que dizer da trilha sonora? Rica Amabis e Beth Beli (da trilha “Cavalaria de Ogum” criada pelo Ilú Obá de Min) bordaram com uma sensibilidade ímpar cada ponto da narrativa. Um afago aos ouvidos.

Entre risos e arrepios emocionados, ao acender das luzes fica a sensação de um grande aprendizado. Beto Brant e Camila Pitanga conseguiram traduzir nas lentes o sentido da transmissão de conhecimento ao modo dos nossos ancestrais, das nossas matrizes africanas. É Antônio Pitanga quem narra e ensina, dá nó em pingo d’água, seduz, enfeitiça o espectador com o seu ofó, o poder da palavra. Como um bom malandro, de linho e chapéu, ele ginga, amarra o ponto, enlaça o saber e se faz um nganga, um mestre da arte e da vida. E para nós, malungus¹, a sabedoria é transmitida com alegria, com festa, com amor. É gún, é vitalidade.

Para quem está em São Paulo, corra! Ainda dá tempo! Dia 28/10 no Cinearte e dia 30/10 na Cinemateca, como parte da programação da 40ª Mostra Internacional de Cinema.

Salve malungu Pitanga!

¹ Malungu, em kimbundu significa companheiros de travessia ou companheiros de embarcação. Aqueles que compartilham aspectos cosmológicos e culturais. Relativo à diáspora africana. (Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta no Brasil, Robert Slenes).

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