Pixinguinha, o samba e a construção do Brasil moderno

A inserção do Brasil no chamado “mundo moderno” foi a grande busca civilizatória de nossas elites entre final do século XIX e a primeira metade do século XX. Um país que almejava se equiparar as grandes nações da Europa Ocidental, em especial França e Reino Unido, tornando-se buscando galgar padrões de conjuntos sociais estranhos as nossas sociabilidades e historicidades, visando a construção de uma sociedade nacional europeia na parte sul da América, baseada em padrões de poder e desenvolvimento social, cultural e econômico em que prevalecesse um padrão único de identidade nacional, que deveria ser “branca, cristã (católica) e conservadora”.

Elitismo civilizatório que resultou na literal demonização de nossas origens e características sociais e culturais, de nossas raízes civilizacionais, indígenas e negras, na desvalorização pura e simples de nossa verve popular enquanto sinônimo de barbarismo e atraso civilizatório, principais fatores de nosso atraso social e econômico e impedimento ao nosso galgar nas terras míticas da modernidade. O que justificou a busca pela eliminação física e cultural dessas populações através de práticas de apagamento, de extermínio – coletivo e individual – destes corpos e seus saberes através dos processos de miscigenação inseridos como parte do modelo de eugenismo e purificação racial implementados nos país ao final do nosso período escravocrata e com o processo massivo de imigração europeia visando a transformação do Brasil em uma nação branca, ao final do século XX.

Processo de visão, de construção de nação em que tudo aquilo que fosse considerado enquanto “não branco”, “não europeu” passa a ser interpretado como elementos “fora de ordem”, portanto perigosos e que deveriam ser vigiados, controlados e exterminados dos padrões formais de nossos conjuntos de relações sociais, de nossos processos de concepção e gestão de poder. Pelo bem da nação que haveríamos de ver construída, pelas virtudes e honra de suas elites, agentes de um novo mundo que deveria por se erguer entre searas selvagens de clima e população (indígena, negra e mestiça) hostil ao progresso. Não sendo por acaso que ocorre uma série de produções culturais e intelectuais que primavam por copiar detalhe por detalhe, as estruturas metodológicas, os conceitos e ideários europeus, visando demonstrar que por aqui também havia modernidade e civilização. O que nos revela a existência de produções culturais, intelectuais e políticas em que o “povo brasileiro” não aparece em suas narrativas ou perspectivas de maneira altiva ou ao menos respeitosa, sendo sempre retratados enquanto a ralé, plebe, malta ignóbil, como peças a serem utilizadas a bel prazer das elites em seu projeto civilizatório. Uma concepção elitista de sociedade, de viés classista e racista, que de certo modo, com variâncias e alterações, ainda em curso aos dias de hoje. Ou seja, somos reflexos diretos dos anseios civilizatórios discriminatórios e racistas de nossas elites arcaicas de final do século XIX, na sua busca insana em se tornar algo que nunca foi e nem nunca será, negando as suas melhores características, as suas melhores virtudes e potencialidades em meio a esse processo de negação identitária, que acaba por vitimar e penalizar em especial as suas populações historicamente mais marginalizadas e discriminadas.

Mas como os processos de (sobre)vivências e sociabilidades ocorrem de maneira orgânica e pulsante, a revelia dos desejos e vontades das elites gestoras, ocorrem a constituição de formas de culturas, saberes e intelectualidades de viés popular, de suas camadas mais pobres que atestam a constituição de outros modelos de modernidades que passam ao largo dos cânones formais e do reconhecimento valorativo das camadas sociais mais abastadas. Em especial, entre as populações afrodescendentes esse foi (é) um fenômeno histórico, social que sedimentará aquilo que será depois interpretado enquanto base de nossa cultura popular, representação significativa do melhor da contribuição brasileira para o mundo. Revoluções seculares cotidianas invisíveis para as nossas elites, ou invisibilizadas por estas, que preferiam interpretar as complexidades, diversidades e sofisticações simbólicas e conceituais das mesmas enquanto exemplos de nosso primitivismo civilizacional, sendo quando muito merecedoras de um olhar pitoresco, de curiosidade quase mórbida, quando não patológica, por nossas populações dirigentes. Expressões de saberes e historicidades que apontavam a existência e perspectiva de outros caminhos civilizatórios ao país, que ocorriam em meio as suas entranhas, nas suas partes orgânicas consideradas mais impuras e não valorativas.

Processos que hoje nos ajudam melhor compreender os processos de modernização que ocorreram no Brasil em final dos séculos XIX e que de certa maneira ainda estamos vivenciando até os dias de hoje, e em que o samba enquanto elemento ao mesmo tempo religioso-cultural-político-social-intelectual que representa essa modernização da sociedade brasileira pelos de baixo, pelos socialmente marginalizados e excluídos ao longo de nossa história. Uma expressão pluricultural de saberes e historicidades de origem afro que ao se amalgamarem, deram forma a uma forma de modernidade não usual e fora dos padrões elitistas e racistas imperantes a época, o que nos explica o porque de sua constante perseguição policial pelo Estado brasileiro desde as primeiras manifestações registradas das macumbas, capoeiras, batuques, congadas e candomblés que viriam a tomar forma de cultura urbana no Rio de Janeiro entre final do século XIX e começo do século XX. Expressão afrourbana que terá na pessoa de Pixinguinha uma de suas figuras mais decisivas e importantes para a sua transformação em cultura nacional, assim como sinônimo da modernidade brasileira perante o mundo.

Nesse sentido, esse artigo se coloca como questionador do conceito histórico de que o Brasil se insere a modernidade mundo através da realização da “Semana Moderna de 1922”, mas sim pela construção do samba moderno a partir da ótica artística de Pixinguinha (1897-1973) – nome artístico de Alfredo da Rocha Vianna Filho – em especial de sua excursão com os “oito Batutas” pela França em 1921(1), patrocinado pelo multimilionário Arnaldo Guinle (1884-1963), após o conhecerem durante temporada no Cabaré Assírio, no subsolo do teatro municipal do Rio de Janeiro, término de uma turnê nacional – iniciada em 1919 – de enorme sucesso popular, apesar das críticas negativas de cunho racista dos cadernos culturais da época. Tal perspectiva teórica nos guia pelo fato de Pixinguinha apresentar a sua construção artística de samba em uma Paris “capital do mundo”, em plena efervescência de seu auge cultural e do impacto que esta arte afronegra urbana causou em meio a esse cenário. Enquanto uma das mais inovadoras formas de inventividade e sofisticação da existência humana. Uma revolução cultural em meio ao cerne da modernidade cultural mundial.

O samba de Pixinguinha é resultante além do amálgama das expressões culturais e religiosas de origem afro ou afro-brasileiras, também se deu enquanto resultante de um processo de trocas de experiências culturais entre diferentes expressões e formas culturais afrodiaspóricas que começavam a circular pelo mundo, de maneira mais ampla e rápida graças as ondas sonoras dos rádios, gravações de discos de ceras e partituras que chegavam ao Rio de Janeiro através de seu porto, em que vários músicos, assim como seus amigos e familiares, trabalhavam como estivadores, existindo toda uma vida cultural que se desenvolvia em torno da vida portuária carioca, que funcionava enquanto acesso das populações pobres e marginalizadas da cidade ao que de mais moderno ocorria no mundo, de maneiras inimaginadas pelas elites da época, com impactos ainda não devidamente situados e valorizados em suas importâncias e significados para a cultura brasileira. Fora a influência de música europeia como a polca ou a música de Bach, retrabalhados e contextualizados pelos músicos negros e mestiços que deram origem ao choro e maxixe, que seriam presenças seminais ao artesanato musical de Pixinguinha.

Para além dos limites e preconceitos da época, Pixinguinha foi artífice de uma expressão artística que inseria a cultura brasileira enquanto parte inerente e referencial do universo afrodiaspórico, dos processos de negritudes reinventadas, acerca das experiências das populações afrodescendentes nas Américas, ao mesmo tempo em que se colocava enquanto cultura de proa daquilo que de melhor existia no chamado “mundo moderno ocidental”. Em uma época segundo a qual era comum e de bom grado defender e promover a “inferioridade natural” das populações negras e culpá-las pelas mazelas sociais do Brasil, Pixinguinha e seus oito Batutas subverte essa ordem, conquistando – literalmente – a cidade luz, estabelecendo novos parâmetros, novos referenciais culturais e de modernidade aos próprios europeus. Superando toda uma série de estereótipos e de preconceitos para isso, de “sujeitos (homens) de cor” executores de “música da selva”, “quente” e “exótica”, para artífices de novos tempos, de uma nova aurora civilizatória para a humanidade.

Para desespero das elites locais que desfilavam seus temores, através dos periódicos da época, de que a estadia daquela trupe de músicos populares e em sua maioria negra, poderiam causar a imagem do país perante o mundo. Nos associando definitivamente a tradições e costumes “bárbaros”, “incultos”, com uma imagem africana e não europeia, além da vergonha que o fracasso daquela excursão causaria a toda nação, criticando a classe política da época por não ter impedido o embarque dos músicos para o “velho mundo”. Um sentimento de superioridade moral e racial das nossas elites em relação as suas populações não brancas e todas as historicidades e expressões culturais delas originadas, tão arraigado que se fazia presente até mesmo em grupos sociais, culturais e políticos que se posicionavam enquanto socialmente progressistas, como aos jovens artistas e escritores formuladores da “Semana de Arte Moderna de 1922”.

Movimento cultural de impacto profundo ao desenvolvimento e modernização dos setores culturais e políticos no Brasil, mas que partia sempre do prisma dos elementos culturais “nativos” – indígenas – e africanos, serem mediados, depurados e ressignificados por matizes europeias, para desenvolvimento de uma verdadeira arte nacional e libertadora, mas sempre pelo olhar balizador de nossas elites, mesmo quando dissidentes destas, como eram os modernistas. Tendo como exceção a figura intelectual de Mário de Andrade e sua negritude em transe, que sempre permeou e se fez presente a sua obra, mesmo que quase sempre ignorada, quando não depreciada, tanto por seus amigos, quanto por seus críticos (2). Processo de racismo não mascarado por nossas elites, que acreditamos tenha contribuído em muito para o quase esquecimento dos impactos revolucionários que a estadia dos 8 Batutas causaram na Europa e o quanto o samba moderno do conjunto, calcado nas capoeiras, candomblés, batuques, lundus, congadas e choro das ruas e terreiros cariocas, representou positivamente para a construção de uma imagem positiva, idílica e harmoniosa da sociedade brasileira, assim inserindo o país ao panteão de “sociedades modernas” como tão almejava as suas elites dominantes.

Não por acaso, após uma negativa inicial dos cadernos culturais do período, ficando a imagem simbólica da “Semana de Arte Moderna de 22” como o símbolo do nascimento da modernidade entre nós e de nossa inserção soberana a modernidade-mundo vigente, mesmo que seu impacto no exterior tenha se dado de maneira espaçada e pontual(3), em detrimento do impacto imediato causado pela arte revolucionária de Pixinguinha e sua trupe musical entre os círculos culturais europeus. Um sucesso e impacto que só não foi maior, devido ao fato dos músicos decidirem retornar a terra mátria, por saudades das “coisas do Brasil”, dispensando uma série de convites para shows e mais shows, turnês, ganhos financeiros e reconhecimento artístico que sequer imaginariam obter em seu país natal. Cada apresentação, era uma demonstração ao mundo de uma nova forma de música urbana, articulada e desenvolvida, com estrutura rítmica e harmoniosa de alta sofisticação, ao mesmo tempo constituída para desenvolver-se através de improvisações e trocas de experiências sonoras e estéticas com outros artistas ou vertentes musicais. Não por acaso as gravações e partituras desse período em Paris, terem sido referenciais para o cenáriom musical francês, além do mundo do jazz norte-americano, como ficaria comprovado pela admiração confessa de Louis Armstrong (1901-1971) por Pixinguinha ou da regravação de “Tico-Tico no fubá” por Charlie Parker (1920 – 1955) no álbum “La Paloma”(4) em 1954.

Expressão cultural em que o samba, muito antes da imagem estereotipada estruturada em torno de Carmem Miranda (1909-1955), apresentou o Brasil ao mundo, pelo que de fato ele é, pelas originalidades culturais desenvolvidas por suas camadas mais humildes e discriminadas, enquanto formas de resistências ante uma sociedade que as ignorava em suas existências e valores. Não precisando ter suas sapiências e historicidades contadas ou interpretadas por outros, para serem reconhecidas ou validadas.

Pixinguinha e os oito Batutas, em outras palavras, inseriram o Brasil na modernidade do mundo, ao botar a Europa literalmente – em pleno auge neocolonial e teorizações racistas/eugenistas – para sambar, ao mesmo tempo em que transformava em pó toda a discursiva racista da elite brasileira, envergonhada e temerosa em ver o país representado no exterior por um conjunto de músicos negros tocadores de choros e modinhas vulgares. Constituindo um dos momentos mais singulares e definidores do que hoje chamamos de brasilidade e identidade nacional. Desbravadores que nos fazendo sambar, acabaram por florescer e frutificar a modernidade entre nós, de maneira autônoma e independente aos cânones europeus ou conservadorismos de nossas elites. Assim, nos demonstrando, para desespero dos racistas, que é a afrodiáspora que vive em nós, que nos torna modernos e contemporâneos ao mundo.

Que mão mais esqueçamos de destacar o impacto cultural que Pixinguinha e seus companheiros realizaram ao tomar de assalto Paris, mostrando que a modernidade não era exclusividade destinada, ou regulada, pelas sapiências e lógicas europeias. Toda honra, toda glória a Pixinguinha e aos oito Batutas, que das festas de santo na casa de Tia Ciata (1854-1924) aos salões e teatros da capital francesa, acabaram por ressignificar a imagem do Brasil perante o mundo, e que saibamos – um dia – valorizar dignamente esse legado revolucionário de sua obra, que por tantos anos se fez renegar, que se fez ignorar em sua magnitude e importância para a construção do chamado Brasil moderno.

Notas Informativas:

(1) (Gravações sonoras que remetem a esse período histórico, entre final dos anos 1910 e começo dos anos 1920, podem ser encontradas no álbum “Pixinguinha no tempo dos oito batutas”, in: https://www.youtube.com/watch?v=6OD9IScC0Yg&t=47s, e nas gravações sonoras “Rosa” (faixa, 3), “Sofres porque queres” (faixa, 4), “Os oito batutas” (faixa, 8) de 1919 e “Eu também vou” (faixa, 9) de 1921, presentes ao álbum “Pixinguinha e seu tempo” (2008), publicado pela gravadora Biscoito Fino.

(2) Para melhor compreensão desse aspecto fundamental da vida e obra artística-intelectual de Mário de Andrade, sugerimos a leitura do livro “Negro Drama: Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade” (2018), lançado pela Ciclo Contínuo Editorial, e a entrevista “Quem é Oswaldo de Camargo? – a polêmica sobre Mário de Andrade e os impasses da legitimidade intelectual negra” (2020), presente ao livro “Pensadores negros pensadoras negras: Brasil, séculos XIX e XX”, lançado pela Fino Traço, em que Oswaldo de Camargo realiza problematização referencial a essa questão.

(3) Num primeiro momento, com a recepção das obras do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), dos artistas plásticos Tarsila do Amaral (1886-1973) e Di Cavalcanti (1897-1976), além de, posteriormente, décadas depois, da produção literária e intelectual de Mário de Andrade (1893-1945).

(4) Áudio da gravação, através do link: https://www.youtube.com/watch?v=x6QvL8i5HfM

Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.
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