Um diretor de teatro anunciou que comporá elenco do musical “Love Story”, adaptação do filme de 1970, com atores negros, exclusivamente. O filme fez grande sucesso e imortalizou a música de mesmo título, ganhadora do Oscar à época. Pode-se ouvi-la no rádio até hoje, como trilha sonora de programas em que são lidas cartas de pessoas solitárias ou apaixonadas, na programação das sextas e sábados à noite.
Por Cidinha da Silva, do DCM
A história narra o encontro de amor de um casal de estudantes. Ele, milionário, cursa Direito em Harvard. Ela, sem posses, estuda música. Os dois decidem se casar e o pai rompe financeiramente com o filho, descontente com a decisão de união e com a nora eleita.
A dupla passa pelas intempéries comuns aos casais jovens sem dinheiro e por fim descobre que a mocinha tem uma doença grave que a levará a óbito.
Esse drama romântico comum e previsível emocionará muita gente, mesmo os corações metidos a analistas frios. Por meio da escolha estética e política do diretor, Tadeu Aguiar, teremos um elenco negro a comover o mundo: mocinha, mocinho, família-vilã, coadjuvantes, cantores.
Serão onze artistas no palco. Entre eles, uma família-vilã negra e rica, algo bastante simbólico para esse país em que os negros não podem ser ricos em paz. Mesmo uma riqueza financeira pouca, de primeira geração e fruto de trabalho, como a dos funkeiros Ludimila e Nego do Borel, em contraposição aos milhões de Eduardo Cunha depositados em paraísos fiscais.
Uma mocinha negra que ficará doente e comoverá a assistência. Um mocinho amoroso, solidário e cuidador, negro. Provedor também, ele conseguirá o dinheiro necessário para confortar a amada. Vejam, será um personagem de caráter forte encenado por um negro. Alguém que goza de credibilidade e merece ser citado como exemplo para as crianças. Ou seja, um lugar que o homem negro não costuma ocupar na dramaturgia.
Não teremos apenas coadjuvantes negros, como às vezes vemos. A humanidade negra será mostrada em carne viva num drama romântico que enternecerá as pessoas.
Mas, isso é mais do que simples escolha estético-política. Essa atitude é ação afirmativa de enfrentamento às desigualdades raciais vividas pelos negros no campo artístico.
Alguém desavisado poderá gritar: a “Exhibit B – Brasil”, do artista branco sul africano Brett Bailey também queria montar um espetáculo com artistas negros brasileiros. Isso não era ação afirmativa? Não estava gerando emprego exclusivamente para negros? Por que reclamaram?
Olhe bem, uma coisa é uma coisa. Outra coisa é outra coisa. A produção de “Exhibit B” baseava-se na tradição colonial-racista, na exposição de negros como objetos inanimados e embrutecidos. Um zoo humano de negros parcialmente despidos e mudos durante os 45 minutos de duração da peça. Como se fazia com africanos e indígenas na Europa oitocentista para deleite dos europeus que não desbravavam os mares nas grandes navegações.
A oferta de entretenimento para o olhar curioso de pessoas brancas constitui a lógica de um continuum de exploração colonial-racista travestida de arte contemporânea.
O que é uma ação afirmativa afinal?
Do ponto de vista semântico, pode ser uma atitude que demarca positivamente um lugar, que assegura ou reforça uma ideia. Por exemplo, quando a Rede Globo foi obrigada a defender a jornalista Maria Julia Coutinho dos ataques racistas sofridos, a empresa foi forçada a agir afirmativamente para garantir a integridade de uma de suas profissionais. Tivemos ali uma atitude afirmativa.
Do ponto de vista da História, do Direito, da Sociologia, entretanto, as ações afirmativas são um conjunto de políticas, ações, programas, propostas, projetos desenvolvidos para enfrentar os desníveis experimentados por grupos discriminados, com o objetivo de promover a justiça social. São iniciativas de governos, empresas, universidades, grupos organizados da sociedade civil que, a partir de um diagnóstico conhecido de desigualdades, empenham-se em fazer a sua parte para construir um mundo mais igualitário e oferecem condições especiais a pessoas que experimentam desvantagens históricas.
As cotas para negros nas universidades e no serviço público, para estudantes oriundos de escolas públicas no ENEM e nas universidades, para as mulheres nos partidos políticos, para as pessoas com deficiência em empresas de mais de 100 funcionários, no Estado e nas empresas terceirizadas, constituem uma modalidade de ação afirmativa. Mais conhecida, talvez.
Para compreender a amplitude da ação proposta pelo musical, faço um convite à leitora, ao leitor desta crônica. Tenham a gentileza de consultar a programação semanal de teatro de sua cidade e façam o seguinte exercício: 1 – contem os espetáculos em cartaz e verifiquem o número de artistas negros em cena; 2 – comparem esse número com o quantitativo de artistas brancos; 3 – contabilizem a presença de protagonistas negros; 4 – observem se eles, os protagonistas negros, estão presentes em peças de temática diversa ou apenas naquelas que encenam histórias de pessoas negras. Assim como em O alto da montanha, em São Paulo, sobre o dia anterior ao assassinato do líder dos direitos civis estadunidense, Martin Luther King.
Certa de que não haverá grande variação nas respostas, não pelo uso da bola de cristal, mas pela experiência e conhecimento do cenário brasileiro, teremos um quadro explicativo da necessidade de ações que promovam os artistas negros.
A ação afirmativa historicamente situada promove mudanças simbólicas que alavancam os discriminados e incomodam os conservadores. Basta ver o empoderamento dos cotistas bem colocados nas provas do ENEM e na seleção das melhores universidades, bem como o descontentamento dos conservadores e racistas, causado pelo número crescente de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras.
Também pelos docentes, mesmo em número ainda ínfimo. Basta ver a concomitância das pichações racistas em banheiros de várias universidades do país, como o Mackenzie e a UNESP, ambas em SP, e a chegada e atuação política de professores negros nos campi.
Ainda no campo simbólico, o musical confronta as agências de recrutamento que estigmatizam os negros para selecioná-los. Vivo ainda na memória o caso da recrutadora +Add Casting que enviou mensagem eletrônica de seleção de ator para a primeira série brasileira do Netflix, “3%”, diziam: “precisamos de um ator jovem, na faixa dos 20-25 anos, muito bonito. A direção gostaria que ele fosse negro, então o ideal seria ter um ator negro e muito bonito, mas conscientes do grau de dificuldade, faremos teste também com os bons atores, lindos, que não sejam negros”.
A produtora “Estamos Aqui”, ao contrário, numa atitude afirmativa, explica que a opção por um elenco totalmente negro para o musical “Love Story” foi feita a partir da avaliação dos currículos recebidos na seleção para as audições. Ela anuncia a escolha de maneira respeitosa: “Dentro da triagem que fizemos, percebemos que em nosso desejo de produção, estariam incluídos mais de 60% de talentosos artistas negros. A partir desta constatação, decidimos que ‘Love Story – Brasil’ terá seu elenco formado por artistas negros”.
A decisão da empresa move-se na esteira de campanhas espontâneas na Web como “Não me vejo, não compro”, protagonizada por crianças negras. Das Barbies que agora têm também baixa estatura, sobrepeso e melanina artificial em diversos tons.
O Boticário turbinou as vendas no dia dos namorados de 2015 com campanha publicitária que promovia a diversidade sexual. Enfrentou com coragem os descontentes, conservadores e/ou fundamentalistas que boicotaram a ação afirmativa da empresa. Manteve a campanha e foi premiada. Entretanto, poderia ter ganhado mais (dinheiro, prestígio, clientes, reconhecimento social) se tivesse incluído os consumidores negros.
Ninguém é inocente por aqui. É óbvio que há por trás da opção feita pela produtora do musical uma estratégia de ampliação de mercado. Pessoas negras brasileiras estão ávidas por consumir produtos, inclusive artísticos, nos quais se vejam representadas com dignidade e respeito. Os empreendedores que compreenderem essa mensagem lucrarão muito e contribuirão para o propalado mundo mais diverso.