Divisão do trabalho doméstico permanece a mesma há duas décadas e ainda sobrecarrega mulheres, sobretudo as mães, que são empurradas a assumir toda a responsabilidade de planejar, organizar e tomar decisões relacionadas à casa e aos filhos
Por Leda Antunes, do O Globo
“Sou eu que tomo todas as decisões em casa. Meu marido participa, mas se eu não pedir, ele não faz”, diz Gabriela Domingues, 33 anos. Ela e o marido Eduardo moram em Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro, com os filhos Guilherme, de 5 anos, e Maria Eduarda, de 10 meses. Como em inúmeros lares brasileiros, é Gabriela quem organiza e executa todas as tarefas da rotina da casa e das crianças. Além disso, se divide entre o escritório de comunicação e marketing que abriu com a irmã e as recém-retomadas aulas de pilates que dá em uma academia na região.
— Eu me sinto sobrecarregada a todo momento — desabafa.
O sentimento de Gabriela não nasce só da enorme lista de afazeres da qual tem que dar conta todos os dias — ela já está de pé às 6 horas da manhã —, mas também do esforço mental e intelectual que precisa fazer para organizar todos os compromissos dela, da casa, do marido e dos dois filhos, e do fato de ainda de ter que delegar as tarefas ao parceiro, que só participa quando é solicitado.
Esse sentimento tem nome: carga mental . O termo é usado para descrever esse trabalho muitas vezes invisível de planejamento e gerenciamento das tarefas domésticas, que recai geralmente sobre as mulheres.
Em uma pesquisa publicada ainda nos anos 90, a socióloga americana Susan Walzer falou sobre a carga mental das mulheres, especialmente após a maternidade, e constatou que elas fazem a maior parte do trabalho intelectual e emocional na criação dos filhos e na organização da casa, e são as responsáveis por executar um trabalho mental que permite que a família basicamente exista.
Elas se preocupam mais do que os homens com os marcos de desenvolvimento da criança, fazem a busca pelo pediatra e levam nas consultas médicas e, ao mesmo tempo, estão atentas para o ingrediente que falta para o jantar ou para o papel higiênico que está no fim. É assim na casa de Gabriela. É ela quem acompanha o filho Guilherme, que é autista, em todos os seus compromissos médicos. E eles não são poucos.
— Fui eu que decidi e organizei toda a nossa mudança para Campo Grande, para que ele pudesse fazer o tratamento aqui. Quase todo dia ele tem terapia, e à noite tem luta, e sou eu que levo e busco. Ele e a mais nova estão com um problema no intestino, e sou eu quem decide se eles vão ou não tomar um remédio — conta.
De lá para cá, uma parcela dos homens passou a participar mais da criação dos filhos e da organização da casa, mas a maioiria ainda se limita a executar as ordens que, muitas vezes, devem ser verbalizadas mais de uma vez. Elas se preocupam, organizam e fazem mais do que seus parceiros e, mesmo quando as tarefas são divididas, ainda precisam delegar e verificar se foi feito.
A distribuição por gênero do trabalho em casa ainda é extremamente desigual. Um estudo recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostra que as mulheres são responsáveis por 80% desses afazeres nos países da América Latina e Caribe.
No Brasil, de acordo com dados do IBGE referentes a 2018, enquanto as mulheres gastam em média 21 horas por semana para cozinhar, lavar, passar e organizar a casa, os homens trabalham a metade. Esse número de horas trabalhadas continua o mesmo há duas décadas. Ainda segundo a pesquisa do instituto, o casamento libera o homem do trabalho doméstico. Entre os que moram sozinhos, 92,7% cozinham e lavam louça. Mas, entre os casados, apenas 58,4% se dedicam a essas atividades.
— As mulheres entraram em massa no mercado de trabalho, mas os homens não entraram na mesma proporção no trabalho doméstico. Há um descompasso muito grande. As mulheres continuam com o trabalho doméstico, mas trabalham fora e são responsáveis pelo cuidado de inúmeras pessoas dentro e fora da família. Os homens não assumiram essas responsabilidades na mesma proporção. E isso as leva à exaustão — explica a antropóloga Mirian Goldenberg.
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Essa divisão desigual é um fato cultural, afirma Goldenberg. Ela explica que, em outras culturas, uma distribuição mais igualitária das responsabilidades da casa e dos filhos tem acontecido mais, citando Alemanha e Espanha como exemplos.
— No Brasil, o cuidado dos filhos é ainda feminino. É a mãe que cuida, ou a sogra, ou a mãe da mãe, a babá, a ajudante, a vizinha, a irmã. Os homens não são socializados ou educados para isso.
— A divisão das tarefas é uma decisão de cada casal, mas essa decisão é guiada pela cultura — reforça a psicóloga e professora associada da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Elizabeth Joan Barham.
Efeitos na saúde mental das mulheres
Gabriela tem andado irritada, tem dormido pouco, pois a filha mais nova ainda acorda durante a noite para mamar, e está emagrecendo. Às vezes se sente “embaralhada” com a quantidade de tarefas que tem de cumprir. A falta de tempo a fez abandonar a terapia e ela tem tido dificuldade para encaixar um exercício físico na rotina.
Insônia, fadiga, esquecimento, irritabilidade, dificuldade de concentração, dores de cabeça ou no estômago são sintomas mais comuns entre mulheres que têm sobrecarga de trabalho doméstico, afirma a doutora em saúde pública e professora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Paloma de Sousa Pinho. Esses sintomas são chamados de transtornos mentais comuns, explica.
Há anos ela estuda os efeitos que esse excesso de trabalho tem sobre as mulheres. O assunto foi o tema escolhido para sua tese de mestrado em saúde coletiva. Na pesquisa, foram entrevistas 2.057 mulheres do município de Feira de Santana, na Bahia. A sobrecarga doméstica foi calculada a partir das atividades de lavar, passar, limpar e cozinhar, ponderadas pela quantidade de moradores no domicílio e se a mulher recebia ou não algum tipo de ajuda.
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O estudo identificou uma prevalência de transtornos mentais comuns entre as mulheres com maior sobrecarga de trabalho doméstico. Esses transtornos foram rastreados por um questionário padrão, que tem perguntas sobre a qualidade do sono da entrevistada, se ela se sente triste, se tem dores no estômago ou na cabeça, se tem tremores nas mãos etc.
— Esses sintomas são transitórios. A mulher pode apresentá-los agora e daqui a 30 dias não sentir mais. Mas a permanência nessa situação pode fazer com que ela desenvolva transtornos mais graves, como ansiedade, depressão, síndrome do pânico — explica Pinho.
A pesquisadora revela ainda que, em um estudo anterior, identificou que a prevalência destes sintomas é maior entre as mulheres casadas, e menor entre as solteiras e divorciadas.
Em suas pesquisas, a antropóloga Mirian Goldenberg também tem se deparado com mulheres em sofrimento psíquico .
— O que eu encontro é que principalmente as mulheres entre 35 e 50 anos estão extremamente insatisfeitas, exaustas e deprimidas. Elas consomem ansiolíticos, antidepressivos, remédios para emagrecer, remédio para dormir. E reclamam principalmente de falta de tempo, falta de reconhecimento e falta de liberdade — afirma.
Menor renda, maior sobrecarga
O estudo feito pela professora da UFBR também mostra que a associação entre a sobrecarga doméstica e os transtornos mentais comuns é mais evidente entre as mulheres com baixa renda, baixa escolaridade e ausência de atividades regulares de lazer. Para aquelas que recebiam até meio salário mínimo, 48,4% tinham alta sobrecarga. Esse percentual caiu para 21,2% quando as mulheres recebiam mais de um salário mínimo por mês.
A sobrecarga doméstica alta foi expressivamente maior entre as mulheres com idade entre 21 e 40 anos, com nível de escolaridade fundamental, entre as casadas ou em união estável e entre as mulheres negras .
— As mulheres das classes mais baixas, com baixa escolaridade e com mais dependência econômica, são as mais vulneráveis e acabam tendo relações pouco ou nada igualitárias e muitas vezes violentas — afirma Goldenberg.
Sem remuneração e sem reconhecimento
Apesar de ser um pilar fundamental da economia e da sociedade, o trabalho doméstico ainda é mal remunerado e pouco reconhecido. Historicamente, a administração da casa foi imposta como uma atividade essencialmente feminina .
— Eu me sinto absurdamente sobrecarregada e até um pouco injustiçada por ter que me dedicar inteiramente, abdicar de coisas que eu fazia antes — conta Mary Ellen Gomes. Ela tem 21 anos, é casada há 4 e tem duas filhas: uma de 3 anos e outra de 5 meses.
Para a psicóloga Elizabeth Joan Barham, essa percepção de injustiça tem grande peso na insatisfação das mulheres com a divisão do trabalho doméstico, às vezes mais do que a quantidade de horas que cada um dedica a isso.
— Se o parceiro está trabalhando muito fora de casa e ela menos, pode ser que ela não sinta essa injustiça. Mas se não for essa a percepção, ela sente que o outro não tem respeito por ela e pelas suas necessidades — avalia.
Há dois anos Mary Ellen trancou a faculdade de enfermagem, abriu mão do trabalho como autônoma e passou a cuidar da casa e das filhas em tempo integral. Todos os dias, o marido sai às 6h da manhã e só retorna às 23h30, pois emenda trabalho e faculdade.
— Sou responsável por todas as tarefas. Ele participa quando chega em casa, deleguei a função de colocar a caçula para dormir diariamente, acabo ganhando um tempo extra para tomar um banho com a mais velha e colocá-la na cama. Mas por mais que ele tenha uma boa vontade absurda, geralmente só faz as coisas se eu pedir — conta Mary Ellen.
— Eu tenho certeza que trabalhar fora cansa menos do que ser dona de casa. Mas não é sobre fugir da responsabilidade, é só pelo simples fato de conquistar as minhas coisas, de me reconhecer. Hoje, só me enxergo como mãe 100% do tempo — desabafa.
A realidade no Brasil é que a maioria dos homens não se compromete com esse cuidado, afirma Goldenberg. Ela explica que ainda prevalece a ideia do homem que ajuda ou não ajuda em casa.
— Acho esse verbo péssimo. Não é uma questão de ajuda, é de responsabilidade mútua. A casa é dos dois, os filhos são dos dois, o bem-estar é dos dois — diz a antropóloga.
— Aqueles que assumem alguma responsabilidade são vistos como “olha que lindo, como ele é bom companheiro, como ele me ajuda, participa”, como se fosse algo extremamente exótico ou até inesperado. Mas os dois devem ter a postura de compartilhar. Os homens devem ser educados desde muito cedo para isso — completa.
Para a doutora em saúde pública Paloma de Sousa Pinho, também é necessário que o Estado ofereça uma estrutura mínima e invista em políticas públicas para a criação de redes de apoio para essas mulheres.
— É importante dar visibilidade a esse trabalho doméstico, que não é reconhecido e nem remunerado, é importante falar que, mesmo inserida no mercado, a mulher continua a principal responsável por ele, e que a soma dessa carga pode ocasionar esses transtornos mentais — diz.