Práticas Feministas no Meio Popular

“Olha, Bichona, amo meu companheiro, então criar os filhos dele é extensão desse amor. Para mim são meus também, tenho o mesmo zelo, cuidado e carinho; as mesmas preocupações, educo como educo as minhas filhas. Não me sinto usada faço porque amo. Pra mim não é trabalho e nem sacrifício, a mãe deles morreu, se fosse eu que tivesse morrido, gostaria que alguém cuidasse das minhas filhas. É comum por aqui, você encontrar mulheres cuidando dos meninos e meninas de outras mulheres por morte ou por separação dos maridos.” (Antônia Alves, Zona Rural de São Desidério – Bahia)

por Altamira Simões via Guest Post para o Portal Geledés

Bichona sou eu. Recebi essa resposta de uma Senhora que acolhi na Unidade Móvel de Atendimento às Mulheres em situação de Violência Doméstica, quando perguntei se não era puxado criar suas filhas e os filhos do marido. Dona Antônia Alves me deu uma lição de feminismo, revelou a essência da palavra em práticas concretas. E a partir de suas experiências fui remetida à minha própria história.

Fui criada por madrasta, mas em meu coração ela é minha mãe. Maria Bertolina é o seu nome. Quando minha mãe se envolveu com meu pai, ele já era casado com minha madrasta, mas não tinham filhos. Nunca me foi relatado como se deu esse envolvimento e como minha madrasta tomou conhecimento. Quando tomei consciência já morava com ela, criada com muito afeto e carinho. Todos os anos minha mãe vinha do Rio de Janeiro me visitar, trazia presentes para mim e ela. Era uma convivência de irmandade, não havia nenhum tipo de constrangimento ou mágoa

É lógico que isso me intrigava, à medida que fui crescendo ficava imaginando o que fazia minha madrasta conviver de forma afetuosa, respeitosa, criando uma filha, fruto da traição do seu marido. Tratando uma mulher, que a princípio poderia ter lhe gerado sofrimento, mas que ela parecia ter superado ou nunca ter sentido dor

Encontrei todas as respostas ao me apropriar do termo Feminismo, percebi que as teorias, que parecem novidades dentro dos espaços acadêmicos, já são uma constância naturalizada nos meios populares. As Mulheres Negras exercem o feminismo com naturalidade, numa rede de proteção e cuidados. Revelando compreensão mesmo que em determinados momentos ajam com a razão, motivadas pela mágoa e pela dor da perda ou possibilidade de perda

Muitas vezes as atitudes machistas, sentimentos de propriedade do ser amado, que ocorre nas relações hetero ou homoafetivas são impulsionadas pelo medo da solidão. A solidão da mulher negra é muito dolorosa e se interlaça com a questão racial, social e intelectual. Há um peso maior no abandono, na perda do ser amado. Por outro lado, há comportamentos incompreensíveis de Mulheres Negras na tentativa de manter um relacionamento estável. E por entender essas nuances, que só quem é preta sabe, que o exercício do feminismo nos meios populares é natural, distante das teorias e bem próximo das práticas cotidianas. Se por um lado se rejeita algumas atitudes, por outro lado se entende as motivações e acolhe.

O feminismo nos meios populares não se prende ao certo, ao definido, ao lido e publicado. É uma prática mais latente, pulsante, corriqueira e oscilante na forma de vivenciar e transmitir.

Bichona, eu nunca vi essa palavra, não, Feminismo, mas pelas letras vem de fêmea, não é isso? Vem do corpo, do seio e do coração da mulher. Vem das mãos que cuida a terra, que cuida das crias uma das outras e dos nossos homens? É isso? Você mesmo é feminista, você pisa nossa terra, você olha em nossos olhos, canta, abraça e faz a gente dançar. Pra mim, isso é feminismo, isso é ser fêmea, não ter besteira. Vem de longe e parece que é daqui. Eta, Bichona, da peste! (Maria do Socorro, São Desidério, Zona Rural da Bahia)

Eis uma Bichona na intuição de sentir e revelar-se. Compreender a partir de suas vivências, Dona Maria, assim, como as Mulheres do Meio Popular que encontro, já nasceram sábias. Feminismo é isso, olhar nos olhos de nossas pares e transmitir o sentimento de compreensão, de afeto, oferecer o colo, as mãos. Oferecer as mãos para acariciar e dá sacudidelas. Eis o feminismo que as Mulheres do Povo vivenciam nas lidas diárias. Não há a disputa perversa do mostrar-se individualmente. Há um desejo no bem coletivo, na partilha do amor, da pobreza e dos sentimentos

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Não há Feminismo sem esse olhar a partir da outra; a sororidade feminista fazendo seu papel de verdade e com verdade nos meios populares, pactuando os laços de irmandade que faz amar mesmo quando parece difícil, complicado e incompreensível aos olhos comum. Aos olhos de fora.
A sororidade feminista, que entre as Mulheres Negras se revela mais forte e constante, por conta das semelhanças de sentimentos e costumes, difere de outras práticas feministas porque vem carregada de ousadia, renúncias e encontros que marcam toda uma vida de quem experimenta, mesmo que seja uma junção casual

Enfim, o feminismo nos Meios Populares exerce uma transformação de comportamento, de olhares e de condutas. Traz desconforto aos discursos engessados que diferem de escritos e ação. Nos Meios Populares as ações se tornam gestos e os gestos em palavras com definições próprias e sentidas na alma.

Altamira Simões
Negra Lésbica
Teóloga
Graduanda em Letras

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