Dona Dora, de 91 anos, conta como era ser uma mulher negra na Novo Hamburgo dos anos 1930

“Quando teve o primeiro cinema de Novo Hamburgo os negros sentavam em lugar separado e não podiam sair dali.”

Por Andressa Lima no Movi+

Como já falei sobre meu avô, agora conto um pouco sobre sua esposa, minha querida avó. Compartilho uma entrevista que fiz com ela no dia de seu aniversário, resgatando algumas histórias interessantes e o que se passa na cabeça de uma pessoas que passou por tanta coisa.

Sei que nascer apenas 35 anos após a assinatura da Lei Áurea não deve ter sido fácil e apesar de morar com a dona Darcy da Silva, (chamada carinhosamente de Dona Dora) não tenho noção do que ela passou, porque ouvir é uma coisa, sentir na pele é outra.

No 25º dia do mês de agosto do ano de 1923, a pessoa mais batalhadora que já conheci veio ao mundo e com ela as dificuldades. Só que isso não tirou a alegria e vontade de viver, como ela mesma conta abaixo:

Dona Dora: “Nasci no bairro África (chamado agora de Guarani), onde morei até a morte do meu pai. Tinha apenas 10 anos. Ele era pintor e pedreiro e ajudou a construir a Escola São João, uma pequena capela onde estudei. Como era muito católico, ele fazia reformas na escola de graça no seu tempo livre. Depois disso, fui para casas de família trabalhar como doméstica”.

Quando completou 14 anos, foi trabalhar em Porto Alegre junto com uma prima, onde ganhava o equivalente a R$ 80,00 por mês. O que foi vantajoso, pois, na época, necessitaria pegar quatro ou cinco conduções para ir até o emprego. Além disso, se permanecesse em Novo Hamburgo ganharia apenas R$ 20,00. Mas acabou retornando após um ano, por causa do falecimento de sua mãe.

dona dora 2Aos 15 anos de idade, morou nas casas em que trabalhou, até casar-se, aos 28, e se mudar. Depois do casamento e do nascimento dos filhos, não parou de trabalhar. “Ser empregada não é bom. Na época, não era empregada, era criada. Só tinha livres os domingos à tarde”, contou.

Bom, o assunto “trabalho” não durou muito. Minha avó já queria falar dos bailes dos quais participava e que ia a outras cidades como Estância Velha, São Leopoldo e São Sebastião do Caí para se divertir. Falou da Escola de Samba Cruzeiro do Sul e de suas comissões temáticas. Guarda boas lembranças e inúmeras fotos com muito carinho.

Perguntei de maneira leve sobre o racismo sofrido na juventude, mas as histórias foram duras.

E como tu eras tratada aqui em Novo Hamburgo?

Dona Dora: “Faziam ‘pouco caso de nós’. Em lojas, éramos atendidos por último ou nem éramos atendidos, precisávamos ir bem vestidos, com roupas bem novas por causa de uma água ou uma agulha. Ah, e quando teve o primeiro cinema de Novo Hamburgo os negros sentavam em lugar separado e não podiam sair dali. Mas teve um moço negro chamado Armando Malaquia que sentou no setor que era proibido. Mas só ele sentou, porque a fileira inteira ficou vazia. Desde então, sentamos lá e ninguém mais impediu. Lembro, também, que não havia muitos salões de beleza em Novo Hamburgo. E só nos atendiam no horário do meio-dia a portas fechadas, porque ela dizia que as clientes não podiam nos ver lá. Também tinham dias diferentes para que negros, brancos ricos e brancos pobres pudessem rezar missas. Haviam muitas divisões”.

Com os olhos cheios de lágrimas por sentir sua mágoa o descaso, prossegui. E fiz mais uma pergunta para finalizar:

Eu: Nesses 91 anos, tem algum fato que marcou muito a tua vida?

Dona Dora: “Quando retornei a Novo Hamburgo, após a morte da minha mãe, meu irmão estava morando em nossa casa, mas com meus tios. Minha irmã mais nova se desentendeu com minha tia e saiu de lá, foi morar com uma prima. E quando voltei fui com ela também. Foi difícil, mas preferi isso do que ficar brigada com a minha irmã”, concluiu emotiva e com saudades dos irmãos mais novos, Juracy e Valdomiro. Com certeza, foi a entrevista mais difícil que já fiz, ainda mais por ser com a pessoa que mais amo no mundo.

Posso ter repetido muitas vezes a palavra trabalho e sei que você, leitor, notou isso. No entanto, é a palavra que minha avó conhece bem e pode até ser considerada seu nome do meio. Mas de minha parte, pode acrescentar outra: orgulho. Orgulho de uma família inteira, que está em pé graças a uma pessoa que suou muito para chegar até aqui e que agora faz com que os descendentes sonhem alto e cheguem onde quiserem.

Resumir nove décadas em um dia render memórias dolorosas e agradáveis, mas foi um dia especial. Neste dia, comemoramos o aniversário dela em sua casa, onde mora desde os 28 anos de idade. A festinha teve balões, bolo e muitos presentes. E quer saber o que ela pediu ao soprar as velhinhas? Bom, isso foi dito em off. Sabem como é, né? Sigilo entre repórter e entrevistada.

Abaixo Grandma’s Hands, som do músico Bill Withers, que inspirou essa publicação.

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