Preconceito e o Feminismo

A questão racial precisa ser levada em conta se o feminismo quiser cumprir sua proposta de mudança dos valores antigos

por Lélia Gonzalez

No meio do movimento das mulheres brancas, eu sou a criadora de caso, porque elas não conseguiram me cooptar. No interior do movimento havia um discurso estabelecido com relação às mulheres negras, um estereótipo. As mulheres negras são agressivas, são criadoras de caso, não dá pra gente dialogar com elas etc. Eu me enquadrei legal nessa perspectiva aí. Porque, para elas, a mulher negra tinha que ser, antes de tudo, uma feminista de quatro costados. Preocupada com as questões que elas estavam colocando.

Isso a gente já discutiu muito e a experiência mais positiva que eu tive foi no encontro na Bolívia promovido pelo MUDAR (Mulheres por um Desenvolvimento Alternativo) – uma entidade internacional que foi criada um pouco antes do encerramento da década. Foi ali que, pela primeira vez, eu encontrei um tipo de eco, uma maturidade por parte do movimento, no sentido de parar e refletir sobre as questões que a gente coloca enquanto mulher negra, a dimensão racial que está presente em tudo, e você não pode fingir que ela não existe.

Mas não há dúvida que existe um setor no movimento de mulheres que está preocupado com a questão racial. O feminismo, como uma feminista inglesa colocava, não terá cumprido sua proposta de mudança dos valores antigos, se ele não levar em conta a questão racial. Uma história que rolou e gera uma grande luta interna com o homem negro diz respeito à sexualidade, porque muitos homens negros preferem as mulheres brancas.

Eles internalizam o valor branco como supremo, como todos nós. Só que a gente está tentando sair dessa. Até algumas lideranças do movimento negro só transam com mulheres brancas. E isso é uma forma de reprodução dos esquema racistas, sem sombra de dúvida. Dentro da proposta de feminismo que a gente está tentando colocar, parece-me fundamental não perder de vista a relação homem negro-mulher negra. Tem que ser uma coisa dinâmica, sobretudo porque fazemos parte de uma comunidade que é discriminada pela dimensão racial.

E me parece que as respostas de parte a parte, até o momento, não são satisfatórias. De um lado, temos uma postura muito machista do homem negro, e eu vejo que a sua procura da mulher branca passa por aí. Pela nossa experiência histórica juntas (homem negro/mulher negra), a gente se conhece muito bem, há toda uma cumplicidade no que diz respeito ao enfrentamento de uma série de questões. Mas no caso da mulher branca, ela não vivencia essa experiência da discriminação racial. Então acontece que, muitas vezes, os homens negros vão exercer seu machismo junto às mulheres brancas. De certa forma o homem negro atualiza sua rivalidade com o homem branco na disputa da mulher branca.

* Lélia Gonzalez, antropóloga, feminista, negra, intelectual, faleceu em 1994. Reprodução de um trecho de uma entrevista publicada no Jornal do Movimento Negro em 1991.

Fonte:Persona Mulher

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