Presidente Lula, não precisamos de uma juíza negra no STF, precisamos de 3

Enviado por / FontePor Paulo Scott, de ECOA

Não há solução civilizatória razoável para o Brasil que não passe pelo enfrentamento de nossa desigualdade socioeconômica, espécie de marca do país (o termo a brasilianização do mundo foi utilizado por estrangeiros, em alguns momentos do século passado e deste também, justamente para designar o tipo de padrão de sociedade em que, apesar da inegável potencialidade, a desigualdade socioeconômica é uma constante e é abissal).

Toda movimentação político-econômica, toda política pública, não importa em que instância federativa, toda decisão judicial que não leve em conta o compromisso de diminuir essa desigualdade é procrastinação (quando não for perpetuação perversa) dessa condição que atrasa a possibilidade de um dia chegarmos à concretização do tal modelo de Estado Democrático de Direito e de um mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana, tão ambiciosa e necessariamente inscritos em nossa Constituição Federal de 1988.

A desigualdade socioeconômica brasileira (não há como escapar do critério econômico) tem um combustível que qualquer pessoa que conheça um pouco de História consegue identificar: o racismo. E, nesse contexto, como decorrências diretas do racismo (da lógica escravocrata que o sustenta e que afeta a todas as pessoas deste país, independentemente da cor da pele, do fenótipo, que não façam parte da elite, esse menos de um por cento da população), temos, entre outras menos urgentes, a fome, a violência, a precariedade no acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia, à segurança, uma segurança que proteja o cidadão (e não o elimine por conta do seu CEP). O que há de novo nesta lista é que, a partir da segunda década deste século, e da maneira mais despudorada imaginável, o não-enfrentamento dessa igualdade trouxe para nosso dia a dia o recrudescimento da gritaria delirante e assassina do fascismo.

No Brasil, o fascismo se apresenta como uma espécie de cobertura de fuligem tóxica que vai se precipitando sobre a montanha do escravismo, sobre uma perversa ordem civilizatória que já é naturalmente violenta. Essa fuligem é conjunto de lógicas horrendas pelas quais, de maneira cada vez mais despudorada, se reafirma que a solução mágica dos problemas brasileiros está na eliminação das outras pessoas, das que, na lente fascista, insisto, são: os pobres, os trabalhadores mal remunerados, os sujos, os pretos, os gays, os pervertidos, os indígenas, os religiosos do candomblé, as mulheres que defendem o aborto, as mulheres que não se querem submissas, os possuídos pelo diabo e tantas outras pessoas rotuláveis a partir da moralidade escravista-fascistóide (que não é moral e nem ética) e criminosa em variados aspectos que ganhou corações e mentes neste país e continua em ascensão.

Sobre a relação entre escravismo e fascismo, é o seguinte registro do psicanalista Tales Ab’Sáber, na sua obra “O soldado antropofágico: escravidão e não-pensamento no Brasil”: “Nossos grosseiros e tão comuns cidadãos que atacam a base acordada fundamental da cidadania moderna, que recusam felizes os direitos humanos universais, sempre com evidente prazer sádico do direito local de contradizer uma lei geral mais ampla, deveriam ser chamados abertamente de neoescravistas brasileiros – e não genericamente fascistas como costumamos chamar – se não forem os constantes escravistas reais brasileiros, fundo autoritário extremo e interessado de egoísmo antissocial que os sustenta e que eles representam”.

SUPREMO, RAÇA E GÊNERO

A jurista Vera Lucia Santana de Araújo (Foto: Arquivo Pessoal)

Esse debate precisa acontecer e ser ampliado.

E o que, me parece, tem de ser destacado é: este Supremo (sua composição atual) enquanto colegiado não consegue enxergar as verdadeiras questões de fundo deste país – enquanto corte não compreende (e alguns dos seus integrantes não querem compreender) o que é proteger, pela consideração dos valores constitucionais, a população trabalhadora, a população carente, a população ameaçada, a população em geral.

Como está acontecendo na literatura, no cinema, nas universidades e em outros espaços da sociedade brasileira, se o Supremo fosse ocupado por um número maior de mentes e vozes negras e indígenas, a corte funcionaria muito melhor.

Se, neste momento, a questão primordial é o levante ético contra o nosso modo torto de nos estruturarmos e contra o formato de nossa sociedade dominada por uma insensível elite (menos de um porcento da população), parece-me, só a perspectiva ética de uma pessoa negra e de uma pessoa indígena (a perspectiva ética de quem historicamente sempre perdeu) poderia dar ao Supremo Tribunal Federal, de maneira consistente e transformadora, voz protetora aos valores democráticos e éticos da constituição vigente – entender o que significa proteger a dignidade da pessoa humana no país do escravismo é fundamental para alcançar a estabilidade social democrática para que, em termos econômicos soberanos, este país possa se desenvolver.

Assim, escrevo este artigo para dizer com toda sobriedade (nunca desconsiderando que o presidente nomeia quem melhor contemplar seus critérios): o Supremo não precisa de uma juíza negra, precisa de, no mínimo, três.

A juíza federal Adriana Cruz (Foto: Justiça Federal – RJ/Reprodução)

Há vários nomes de mulheres negras que, atuantes no Direito, poderiam ser indicadas. Separei três: Adriana Alves dos Santos Cruz (juíza federal), Flávia Martins de Carvalho (juíza estadual) e Vera Lúcia Araújo (advogada e jurista). São mulheres notabilíssimas (para quem consegue ver notabilidade em subjetividades que não sejam a do tradicional homem branco, cavalheiro nobre defensor do feudo) com densa vivência empírica e teórica, com admirável passado relacionado à luta por ética na aplicação da Justiça neste país, pessoas que compreendem bem o que é defender os valores democráticos constitucionais e o imenso problema que é não haver uma democracia verdadeira no país.

Se a questão ética (porque só ela pode resolver o problema da desigualdade socioeconômica deste país) é importante para este governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então chega de esperarmos o futuro, chega de procrastinar as mudanças estruturais inclusive no poder judiciário. Contra o fascismo, contra o pensamento fascista que ganhou ainda mais espaço no judiciário, é preciso dobrar as apostas nas soluções progressistas e maduras, é preciso avançar e afastar o medo que leva as pessoas à falsa acolhida deste novo fascismo.

Duvido que qualquer um dos nomes que citei titubearia em defender a Constituição Federal de 1988 nas situações em que o Supremo Tribunal Federal, como colegiado, vacilou, acovardou-se ou, simplesmente (o que seria mais grave) se dobrou à lógica neofascista que, por inúmeros motivos, ganhou as ruas a partir de 2013.

Por fim, um dos méritos da Constituição Federal de 1988 é que ela, mal ou bem, é a carta que renova um pacto, um projeto ético liberal (nunca pretendido para esta terra) e, dentro de todas as armadilhas dos pactos de elite, do liberalismo clássico, das ilusões do capitalismo e do Direito, fixa, no plano político, a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental – um marco que precisa de um Supremo Tribunal Federal o mais corajoso e o mais ético possível, um Supremo Tribunal Federal que afaste o Estado brasileiro deste lugar de zeladoria de uma elite que não hesitará em abraçar o fascismo e a milicianização inerente ao fascismo para poder continuar ganhando, sugando, saqueando, usurpando esta terra, esta população, como invasora eterna que é, e que afirme um país que possa se colocar de maneira soberana diante do desafio de nossa colonialidade a impedir que O Estado brasileiro alcance a verdadeira democracia. O futuro é agora.

+ sobre o tema

Passeio pela mostra “Um defeito de cor”, inspirada no livro de Ana Maria Gonçalves

"Eu era muito diferente do que imaginava, e durante...

Taís faz um debate sobre feminismo negro em Mister Brau

Fiquei muito feliz em poder trazer o feminismo negro...

Conheça a história de Shirley Chisholm, primeira mulher a ingressar na política americana

Tentativas de assassinato e preconceito marcaram a carreira da...

Roda de Conversa: Mulher, raça e afetividades

O grupo de pesquisa Corpus Dissidente promove a roda...

para lembrar

Barbosa deve anunciar aposentadoria no plenário do Supremo ainda nesta quinta-feira

Ministro comunicou aos presidentes do Senado e da Câmara,...

Barroso, do STF, manda Senado instalar CPI da Covid, em revés para Bolsonaro

O ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal...

Após quase 48 horas de determinação do STJ, TJ ainda não cumpriu decisão e porteiro preso por falhas em investigações segue na cadeia

Quase 48 horas após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinar a soltura imediata...
spot_imgspot_img

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU em Genebra, na Suíça, com três principais missões: avançar nos debates...

Governo confirma prorrogação do Desenrola até 20 de maio

O Governo Federal anunciou extensão do prazo para participação no Programa Desenrola Brasil, iniciativa para ajudar pessoas físicas com dívidas a "limpar o nome". Pessoas...

PF prende Domingos Brazão e Chiquinho Brazão por mandar matar Marielle; delegado Rivaldo Barbosa também é preso

Os irmãos Domingos Brazão e Chiquinho Brazão foram presos neste domingo (24) apontados como mandantes do atentado contra Marielle Franco, em março de 2018, no qual também morreu o motorista Anderson...
-+=