Trabalhadoras, escritoras de famosos periódicos da Imprensa Negra no Brasil, diretoras de clubes negros femininos e participantes ativas desses espaços de sociabilidade e solidariedades, organizadoras de festividades e eventos beneficentes e vendedoras de jornais da Imprensa Negra, entre outras interfaces. Eram incontáveis as atividades desenvolvidas por mulheres negras para demarcar a presença e as possibilidades de inserção da população negra no universo social, político e cultural do pós-abolição no Brasil, ajudando assim com a manutenção dos movimentos negros e suas lutas por direitos e cidadania.
Neste horizonte, o presente texto busca dar a conhecer alguns meandros dessa história de mobilização e ativismo negros a partir de práticas e ações de mulheres pretas ligadas ao jornal O Clarim da Alvorada (1924-1940), famoso periódico da Imprensa Negra paulista, cujas redes de contato e relação dessas sujeitas possibilitam dimensionar algumas estratégias femininas e suas transgressões na cidade de São Paulo durante as primeiras décadas do século XX.
José Correia Leite e Jayme de Aguiar foram os principais idealizadores da folha, mas contavam com o apoio e a escrita de dezenove colaboradoras. Estima-se que 12,8% das pessoas que escreviam no jornal eram mulheres, contribuindo com 9% da produção rotineira d’O Clarim da Alvorada. Embora esse número seja baixo, quando comparado à quantidade de publicações masculinas, ele é bastante expressivo. Isso porque, segundo Petrônio Domingues, naqueles tempos, a escrita feminina esbarrava no machismo e dificilmente obtinha aceitabilidade e inserção no meio masculino.
De acordo com Ana Flávia Magalhães Pinto, a Imprensa Negra era um espaço de lutas e reivindicações sociais e políticas da gente negra no Brasil, sendo escrita por negros e para negros. O intuito principal da Imprensa Negra era de gerar reflexões e modificar a realidade de vida da população negra, sobretudo no pós-abolição. Levando em consideração tais aspectos, os escritos das mulheres negras variavam bastante nessa imprensa periódica. A depender do contexto, elas teciam críticas sociais, realizavam poesias sobre o amor e desafetos e mostravam suas vivências. Observa-se, também, que as demandas movimentadas por elas em suas escritas e reflexões se relacionavam à educação, beleza, organização do movimento negro e embates de gênero no seio da sociedade brasileira da época.
Diante disso, te convido a conhecer Benedita Salles Correia Leite – mulher negra e esposa do redator principal d’O Clarim da Alvorada, José Correia Leite – e as estratégias adotadas por ela e outras mulheres dos clubes negros e femininos, como o “Brinco das Princesas” e o “Grupo das Margaridas”, em São Paulo. Mulheres negras que enfrentaram o racismo e não se calaram frente ao machismo e às desigualdades sociais que atravessavam suas trajetórias. A preocupação dessas mulheres atrelava-se à criação de meios para combater o racismo/machismo e obter maior penetração e aceitabilidade dentro dos próprios movimentos negros, pautando e denunciando essas questões estruturais que tentavam circunscrever a vida e limitar a atuação das mulheres, sobretudo as de cor.
Isso é notável no texto escrito por Benedita Salles Correia Leite e publicado na Página Feminina d’O Clarim da Alvorada em 14 de julho de 1929. Intitulado “A mulher negra e o nosso Congresso”, o discurso empreendido por Benedita revela as condições limitantes que tocavam a vida das mulheres negras e o universo de estratégias e as formas de transgressão construídas e mobilizadas por elas nesse contexto histórico:
“Sou mulher, sou mãe e sou esposa; são essas as razões que me levam a desejar que o congresso da minha raça seja realizado. Discute-se em minha casa, sobre todos os assuntos com respeito à questão racial, porém, eu vejo neste momento que, a influência da mulher negra é necessária neste grande movimento. Porque eu penso assim? Vejamos: em São Paulo há inúmeras sociedades dançantes na totalidade, estas agremiações são frequentadas por mulheres de minha raça e essas damas gozam de grandes influências sobre esses cavalheiros, que, ao invés de ampará-las moralmente; infiltrando em seu espírito como cavalheiros do ideal, – essa corrente forte de desejos, para edificarmos o nosso ambiente moralizando, onde nossas filhas possam ter garantias e frequências. Eu vejo que as sociedades da raça a que pertenço, vão desvirtuando os grandes sonhos dos idealistas contemporâneos. E assim sendo, eles – os idealistas – nada conseguirão sem a ajuda de uma legião de mulheres negras sensatas que tenham vontade. Este é o meu ponto de vista”.
Benedita começa o texto demarcando o seu lugar social e a propriedade que tinha para falar sobre este assunto. Ressalta a influência das mulheres no seio familiar e, principalmente, na luta pelas causas raciais – tema esse que, segundo Benedita, era frequente nos diferentes lares. Também chama a atenção das mulheres pretas para se esforçarem na mobilização pela causa negra, ao mesmo tempo que conclama aos “irmãos negros” que aceitassem as contribuições femininas para a organização e manutenção de seus movimentos em prol de direitos e cidadania.
Embora as questões raciais fossem latentes e caras aos homens negros, preocupados e empenhados no enfrentamento cotidiano às condições excludentes impostas pelo racismo no Brasil – e em especial em São Paulo –, a união de forma efetiva com as mulheres negras e a consideração de suas pautas e demandas específicas não era algo prioritário. Ou seja, havia um limitante interseccional imposto pelo machismo no âmbito desses movimentos negros durante as primeiras décadas do século XX – e para além. Isso porque a mulher negra, de acordo com a compreensão masculina, tinha um lugar social definido: ela deveria ser mãe e se submeter ao governo do homem (pai, irmão e/ou esposo). Todavia, algumas mulheres negras não se limitaram a essas imposições e se engajaram nos debates sobre questões raciais na sociedade paulista. E, através de suas escritas no Clarim, tentavam encorajar e valorizar as mulheres negras através de diversos modos.
Ademais, o poder masculino é preponderante, já que eram homens quem selecionavam as mulheres que seriam colaboradoras diretas da folha. Com a Seção Feminina, houve um aumento de oportunidades para que mulheres negras participassem no periódico. Além disso, observa-se uma espécie de promoção, no qual não seriam apenas leitoras, mas a sua condição passava para escritoras de uma folha de grande relevância dentro do movimento negro em São Paulo. Cabe salientar que a abertura e maior participação feminina no Clarim da Alvorada não devem ser vistos como um presente do homem negro para aquelas mulheres, mas como fruto de uma luta de gênero existente nos bastidores daquele meio social.
Em 1924, na segunda edição do periódico, há uma coluna de agradecimentos a diversos clubes e às mulheres e também a clubes negros femininos, sendo eles: “Sociedade Recreativo Brinco das Princesas” e “Grupo das Margaridas”. O redator salienta que o grupo era composto por cozinheiras que cuidadosamente organizavam bailes e festas na cidade. No decorrer da festividade, utilizavam as louças das casas dos seus patrões, fazendo a devolução após o evento. Além disso, as senhoras financiavam e organizavam aquelas festas. Vale destacar que alguns bailes eram cobrados e, por vezes, contavam com um leilão de prendas. Conforme assinala Fernanda Oliveira, todos esses esforços contribuíram tanto para angariar mais recursos quanto para o fortalecimento da própria comunidade negra.
Algumas lideranças femininas são mencionadas n’O Clarim da Alvorada, como a Dona Banta de Oliveira (presidente do clube “Brinco das Princesas”) e Lavínia Horta (responsável pelo “Grupo das Margaridas”), por exemplo. Ambas eram leitoras do periódico. Não há maiores informações sobre essas mulheres dentro d’O Clarim, assim como seus nomes não são mencionados, pelo menos dos modos como aqui foram escritos, em outras páginas da imprensa negra e até mesmo na imprensa comum. Seguem abaixo as fotografias dessas duas personagens:
Embora as fotografias estejam um pouco danificadas, há alguns elementos que podem ser observados. Ambas as senhoras eram negras e utilizavam trajes impecáveis. Lavínia Horta aparentava ser um pouco mais jovem quando comparada à Banta de Oliveira. Não há como deixar de observar o nome da presidente do clube “Brinco das Princesas”, que conservava a nomenclatura “Banta”. Esta ilustre mulher preta poderia ter as suas raízes, de fato, em grupos da etnia Bantu traficados e escravizados no Brasil; ou talvez ela buscasse criar e fortalecer sua identidade a partir da afirmação de certos elementos africanos (como o nome) que poderiam, ou não, fazer parte de seu passado e de sua família.
Vale salientar que, naquele contexto de inícios do século XX, a África era amplamente estigmatizada como um continente inferior e seus povos e culturas não eram considerados bons elementos para fazerem parte do projeto de nação construído para o Brasil naquela conjuntura. Logo, uma mulher negra que mantinha a sua identidade atrelada à cultura africana não seria bem vista pela sociedade, e, de certo modo, estava agindo de forma a transgredir as regras sociais que foram estabelecidas.
Mesmo com as questões de raça, classe e gênero atravessando a vida das mulheres negras em princípios do século XX, como tentei demonstrar aqui no texto, elas transgrediram o sistema – dentro do campo de possibilidades que possuíam naquele contexto histórico – ao se colocarem como sujeitas que também eram portadoras de profundos conhecimentos sobre a realidade social a qual estavam inseridas. Com isso, teceram e provocaram reflexões públicas a partir de seus escritos, veiculados na Imprensa Negra, e se mobilizaram de diferentes formas pelas causas da população negra, especialmente das mulheres. Atitudes transgressoras e de tensionamento do próprio machismo no seio do movimento negro que se conectam com outras experiências sociais ao longo do tempo.
Por exemplo, nos anos 1980, Lélia Gonzalez já alertava sobre o machismo que também tocava aos homens de cor no Brasil. Segundo explica Lélia, esses homens excluíam as mulheres dos centros de poder e decisões dos grupos, uma vez que reforçavam que elas não tinham capacidade de organização e deveriam desempenhar atividades consideradas “femininas”. Esse era um comportamento muito comum entres os homens, que quando percebiam que o seu poder de dominação era ameaçado por mulheres, se sentiam diminuídos e, portanto, buscavam afirmar a existência de um lugar social destinado às mulheres. Esse fator colaborou com a formação de diversos coletivos femininos, sobretudo o Nzinga, fundado em 1983 no Rio de Janeiro e organizado por Lélia.
Assim, esses coletivos e demais espaços de sociabilidade e solidariedade femininas foram construídos não para dividir o movimento negro entre homens e mulheres. Mas para provocar uma maior visibilidade e integração de agendas de luta que são comuns à gente negra no Brasil, ainda que apresentem especificidades quanto às demandas apresentadas pelas mulheres negras. Logo, esses coletivos femininos que atravessam o século XX tornam-se instrumentos de reflexão e maior diálogo sobre a tripla opressão sofrida pelas mulheres, ontem e (ainda) hoje, que está condicionada por questões relativas a gênero, raça e classe. Ao mesmo tempo que nos permitem visualizar as diversas estratégias e movimentos de mulheres negras no enfrentamento dessas opressões e suas violências cotidianas no Brasil.
Assista ao vídeo da historiadora Ingrid Andresa Neles de Aquino no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).
Ensino Médio: EM13CHS101 (Identificar, analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão de ideias filosóficas e de processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência – física, simbólica, psicológica etc. –, suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos).
Ingrid Andresa Neles de Aquino
Telefone: (21) 99276-1017
Doutoranda em História Social pela UFRRJ
E-mail: [email protected]
Instagram: @nelesingrid
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