Princesa Isabel e a ideologia do branqueamento – Zumbi dos Palmares e o Movimento Negro

Uma das formas pelas quais a dominação é reproduzida, além do uso de meios coercitivos, é pela formulação de um consenso em que os subalternos são convencidos do acerto e mérito da superioridade, inclusive intelectual e moral, de seus dominadores. A construção ideológica dessa hegemonia seleciona e utiliza determinados mitos, personagens e versões de fatos, ao mesmo tempo em que oculta outros fatos menos convenientes. Talvez, apenas isso possa explicar o caso de grande parte da população negra no Brasil, que, de certo modo, tem aceitado a situação de inferioridade que lhe foi atribuída pela classe dominante branca. Um dos meios utilizados para o exercício dessa arquitetura mental foi na insistência da celebração de certas datas históricas.

Por Jairo de Carvalho Do Urutagua

O calendário cívico brasileiro ignora personagens e feitos de representantes da comunidade negra como mais um expediente com que se limitou nos afrodescendentes mais um aspecto de sua humanidade: a capacidade sublime, que todo ser humano tem, a de fazer história. Já se negou essa competência nos antepassados africanos de cerca de 45% dos brasileiros[1]. Mas, nesses últimos tempos, com o ascenso da organização dos negros enquanto movimento reivindicador de igualdade e, nesse caso, de historicidade, trava-se um embate por uma outra história, que vai encontrar expressão na disputa por qual data tem maior significado para o coletivo de descendentes dos africanos no Brasil.

13 de Maio ou 20 de Novembro?

Embora tenha raízes ainda no século XIX, mas é principalmente a partir da década de 40 sob a ditadura do Estado Novo, quando se iniciava a construção da imagem populista de Getúlio Vargas como pai dos pobres, vinha se comemorando no dia 13 de maio de cada ano o aniversário do fim da escravidão no Brasil, o último país do ocidente a abolir essa que é a mais degradante das relações de trabalho.

Como data oficial, o dia 13 de maio era festejado em solenidades públicas onde os meios de comunicação de massa editam matérias referente ao tema, os escolares produzem cartazes, recitam poemas destacando a Princesa Isabel, personagem que se tornou um dos mais importantes da História do Brasil, unicamente pelo ato praticado nessa data há pouco mais de um século. Como tal, guarda semelhanças com outras datas, como o dia 19 de novembro — Dia da Bandeira — ou o dia 25 de agosto — Dia do Soldado, por exemplo.

De certo tempo para cá, duas outras datas passaram a concorrer com o dia 13 de maio, por estarem relacionadas com a mesma questão. Uma delas é o dia 21 de março, escolhido pela ONU, como o Dia Internacional Para a Eliminação da Discriminação Racial e outra, escolhida pelo movimento negro organizado do país, que é o dia 20 de novembro, como o Dia Nacional da Consciência Negra, em homenagem ao aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, ocorrida em 1695.

Quanto ao dia 21 de março, suas razões são internacionais, pois afinal sabemos que o racismo não é praticado exclusivamente no Brasil e sua repercussão entre nós, mesmo nos meios oficiais, tem sido quase inexistente, embora nesses últimos anos já se perceba uma atenção maior pelos movimentos de direitos humanos que parece não querem permitir que essa data passe desapercebida. Por outro lado, o crescimento da importância do dia 20 de novembro é decorrente, principalmente de um questionamento quanto às reais mudanças ocorridas na situação do povo negro e seus descendentes no Brasil em relação ao usufruto da cidadania, portanto um questionamento em relação ao que o dia 13 de maio de 1888 tem simbolizado.

Essa comemoração do dia 20 de Novembro é uma tentativa de se resgatar uma História não oficial, marcada pelas lutas de resistência à escravidão, travadas pelos próprios escravos. É também um rompimento com a ideologia do embranquecimento[2] e da democracia racial[3]. É a luta no sentido de se cultivar valores da cultura negra tão reprimidos em outras épocas.

Por parte dos movimentos negros organizados, a elevação do dia 20 de novembro à categoria de data comemorativa — com manifestações públicas de caráter cívico — tem ganhado a dimensão de alternativa e até de oposição ao significado que até muito recentemente vinha sendo dado ao dia 13 de maio. O aniversário da abolição dos escravos é uma data que vem deixando e ser comemorada e se tornando referência para a reflexão e denúncia, por exemplo, da falsa democracia racial brasileira. Essa oposição ao que data de 13 de maio vinha representado chega a ser manifestada, em determinadas partes do país, com vigorosos atos públicos de protestos. Protesta-se contra a Princesa Isabel e contra o uso que o Estado e as classes dominantes brasileiras têm feito de seu ato, tão festejado até um passado tão próximo.

Poderíamos nos perguntar: por que o movimento negro adota essa postura crítica em relação à Princesa Isabel? Ela não foi boa para os negros acabando com a escravidão?

Diante dessa interrogação teríamos que novamente perguntar: a Abolição foi produto de um ato de bondade da Princesa Isabel para que ela possa ser reverenciada como a benfeitora de uma raça? E teríamos que recuperar criticamente a história daquele período.

A abolição e o abolicionismo

Então, vamos aos fatos: durante todo período que se estende do século XVI até meados do século XIX, a resistência ao regime escravocrata existiu enquanto revoltas dos próprios escravos, tendo como exemplo máximo o Quilombo dos Palmares. Ao par disso, há registros de que, no cotidiano de seus dias, os escravos praticassem pequenos atos de rebeldia.

A partir da segunda metade do século XIX, uma considerável parte da intelectualidade brasileira e inclusive outros setores da classe dominante passaram a aliar-se na luta pelo fim da escravatura no país. Uma dessas correntes de pensamento procurava demonstrar que o regime escravocrata já produzia limitações ao desenvolvimento da economia do país, exemplificando o caso da cafeicultura que necessitava cada vez mais de um volume maior de mão-de-obra que fora limitado com a proibição do tráfico em 1850.

Por essa época, iniciativas governamentais, como a Lei do Ventre Livre em 1871, evidenciavam o interesse de emancipar lenta e gradualmente os escravos com indenizações para os senhores. Foi criado, também, pelo Governo Federal, um Fundo de Emancipação com o qual libertaria anualmente certo número de escravos em cada província. O número de beneficiados era tão pequeno, que se dependesse dela, a escravidão no Brasil só acabaria na metade do século XX, segundo cálculos de Rui Barbosa.[4]

Então, a partir da década de 70 do século XIX, além das pressões internacionais, forma-se internamente uma sistemática oposição ao regime escravocrata encabeçada pelo Partido Liberal Radical. Tal movimento se convencionou chamar movimento abolicionista onde se destacavam as figuras de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e André Rebouças, cuja veemência e intensidade de seus atos,, tornariam a escravidão uma instituição intolerável, porque, além da tarefa de conscientização da população, organizavam fugas e rebeliões nas fazendas, desorganizando o trabalho na lavoura. Assim, nas províncias menos vinculadas ao sistema escravista, a emancipação avançava. Já em 1884, a escravidão foi abolida no Amazonas e Ceará. E, nesse clima, foi sancionada pelo Imperador, a Lei Saraiva-Cotegipe, conhecida como a lei dos sexagenários (28 de setembro de 1885), que também previa um aumento no Fundo de Emancipação, destinado a promover a emigração, o que foi apoiado pelos cafeicultores do oeste paulista.

As fugas dos escravos tornaram-se constantes bem como os conflitos entre populares e autoridades que tentavam impedi-las. Para reter a mão-de-obra nas fazendas, os proprietários acabavam tendo de libertar os escravos. Em 1887 os militares pediam formalmente ao governo que os liberassem da tarefa odiosa de capitães-do-mato, isto é, de ter que sair em perseguição dos escravos fugitivos e trazê-los de volta aos seus donos.

Em 1888 foi apresentada uma proposta ao Poder Executivo para a criação de uma lei que abolisse imediatamente a escravidão no país, ao que uma minoria de deputados representando os cafeicultores do vale do Paraíba, se opôs. Finalmente, após intensas lutas, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel, que substituía o Imperador D. Pedro II, que se encontrava em tratamento de saúde na Europa, assinou a Lei Áurea, libertando cerca de 750.000 cativos, que representavam cerca de um décimo da população negra à época no Brasil.

Como os setores mais dinâmicos da economia já não mais utilizavam o trabalho escravo, a Abolição significou apenas o fim dos entraves à expansão do trabalho assalariado e à emigração. A abolição só trouxe dificuldades para os setores da economia que já se apresentavam em dificuldades, como a cafeicultura do vale do Paraíba e as lavouras do Nordeste.

Os negros foram atirados sem perspectivas no mundo dos brancos com grande parte se dirigindo para as cidades, onde lhes aguardavam o desemprego e uma vida de marginalidade. O que deveria ser um desajustamento transitório transformou-se num desajustamento estrutural, reforçando, assim, o preconceito racial que já vinha desde o início do período colonial, quando a escravidão era justificada pela idéia da superioridade da raça branca sobre o negro.

Ainda existe um longo caminho a percorrer para que o povo negro e seus descendentes possam alcançar definitivamente a eliminação do preconceito e da discriminação racial, mas não se pode desmerecer o avanço que a destruição de mitos como o da democracia racial, encarnados nas comemorações do dia 13 de maio, representam. O seu desmoronamento, sem dúvida, também abala outros sustentáculos dos elementos que reproduzem o racismo no Brasil. A idéia de que existe uma superioridade da raça branca, sustentada por uma concepção eurocêntrica da História, que reforça a ideologia do embranquecimento, nesses últimos anos, graças à justeza com que um número cada vez maior de pessoas reconhece as atitudes do Movimento Negro, já não mais se sustenta mais com o mesmo vigor de alguns anos atrás e, cremos, tende a desaparecer.

* * Membro da equipe de apoio da Pró-Reitoria de Ensino da UEM, Professor da Rede Pública Estadual e militante da Associação União e Consciência Negra de Maringá.

Notas:

[1] Sobre essa questão temos um artigo publicado na edição nº 3 dos Cadernos de Apoio ao Ensino, da Pró-Reitoria de Ensino da UEM.

[2] Para entender o conceito, ver SILVA.

[3] A idéia de democracia racial, criticada pelo Movimento Negro como mito — já que é irreal a igualdade das raças no Brasil —, já perdeu muito de sua força enquanto imaginário coletivo. Ela teria como objetivo esconder os conflitos raciais existentes e diminuir sua importância, passando uma idéia simpática para a sociedade de que no Brasil não existe discriminação racial.

[4] Essa e as demais informações relevantes citadas daqui em diante aparecem em MENDES JR. & MARANHÃO.

REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS

CARVALHO, Jairo de. “Questão negra, História da África e currículos”. In: Cadernos de Apoio ao Ensino. nº 3, Maringá: PEN-UEM, 1997. (111 p.)

MENDES JR., Antônio & MARANHÃO, Ricardo (org.). Brasil História – Império: texto e consulta. 3ª edição. São Paulo: Hucitec. 1989.

SILVA, Ana Célia. “Ideologia do embranquecimento”. In: As idéias racistas, os negros e a educação. Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros – NEN, 1997. (Série O pensamento negro na educação, 1).

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