Querida Sinhá Isabel

Daqui a dois dias seremos lembrados que, numa canetada, uma princesa branca libertou todos os negros escravizados do Brasil. E tenho absoluta certeza de que algumas pessoas, em pleno 2015, celebrarão esse ato de suposta extrema generosidade e compaixão com memes e frases de efeito na minha timeline. Se você é uma dessas, favor persista na leitura.

por Leopoldo Duarte, na Revista Fórum

Segundo a história oficial, somos levados a crer que depois de 3 séculos, 358 anos pra ser mais exato e um pouco de pressão econômica da Inglaterra, Isabel foi acometida de um lapso de teimosia e humanidade que a levou a assinar a abolição dos escravos. Fofa ela, não?! Mereceu até uma pena dourada pra tornar o momento mais mágico e reluzente. A partir de então, cada homem negro e mulher negra se tornaram livres para desfrutarem da tão sonhada liberdade. E todos viveram feliz pra sempre numa democracia racial. Só que não mesmo!

Negros e negras jamais esperaram paciente e pacificamente por suas alforrias. Diversas foram as maneiras usadas para escapar dos grilhões brancos: cartas, culto a ancestralidade, estudo, fuga, suicídio,…. Enfim, não só os quilombos ofereceram resistência contra as injustiças perpetuadas contra negros e negras sob o aval da ciência e do catolicismo da época. A simples sobrevivência naquelas condições sub-humanas deveria ser lembrada como um ato de resiliência ímpar.

Contudo, não podemos deixar de ter em mente que a maior pressão para a abolição veio do movimento abolicionista nacional e internacional, além dos interesses econômicos da nova etapa do capitalismo que surgia.  Tanto foi assim que Sinhá Isabel não se preocupou em assegurar o bem estar dos milhões de escravos jogados na rua. Todos os anos de suor e sangue nas fazendas não garantiram aos afrodescendentes nem um teto, pedaço de terra ou qualquer tipo de direito que os elevasse da precariedade a qual nossos antepassados foram sujeitados.

leia também: 

Aboliram as senzalas, mas não as estruturas legais, políticas e sociais construídos em séculos  de colonização racista. Pelo contrário, coincidentemente, pouco antes da Lei Áurea foi feita uma reforma agrária que limitou a posse de terra a quem pudesse pagar. Antes era, basicamente, só ocupar e cultivar. Sem terra nem dinheiro, uma outra saída seria a educação, mas ainda hoje a elite contesta qualquer tipo de reparação. Imagina no dia seguinte, então…

O problema da cultura ocidental é que acreditamos superar todos os preconceitos do passado a cada passo que damos adiante. Nós ainda insistimos em ver japoneses, apesar de toda superioridade tecnológica, como samurais ou gueishas, e ainda associamos índios a cocares e danças cerimoniais entre outros possíveis exemplos. Contudo nos forçamos a acreditar que séculos de exploração e desumanização de índios e negros foram ultrapassados com uma simples assinatura. Insistimos num final feliz e redentor, e nesse caso, com direito a “princesa” que faz jornada dupla como fada madrinha.

Quando se vive com as consequências desse tipo de barbárie, ou nos deparamos com a inúmeras estatísticas que as comprovam, não dá pra simplesmente engolir tamanha farsa. É triste perceber que há pessoas que celebram o fim de algo do qual deveríamos sentir vergonha de sequer ter existido. Na verdade chega a ser revoltante a forma como algumas pessoas mencionam Isabel como a ovelha de sacrifício que expurgou todos os malefícios cometidos contra os negros. Fico sinceramente na dúvida se se trata de um ato de má fé ou de completa ignorância histórica quando me deparo com esse tipo de exaltação. Até porque, achar que tudo terminou do dia pra noite é, no mínimo, muita inocência. Basta olhar em volta para perceber que os trabalhadores que mais são consumidos e escravizados pelo sistema continuam sendo majoritariamente negros. A negligência produzida nas senzalas foi perpertuada nas favelas, o segmento do mercado de trabalho mais terceirizado é negro, os empregos mais indesejáveis continuam sendo ocupados por negros, as vidas mais ceifadas e justificadas são negras e por aí vai…

Talvez por essa versão oficial da história – na qual uma figura branca redime todas as sinhás e sinhôs tupiniquins – ser mais apaziguadora que tanta gente branca prefira acreditar nela, no entanto, apesar de muitos historiadores terem embranquecido e singularizado esse importante episódio histórico, basta dar uma aprofundada na pesquisa para aprendermos que nem o racismo nem tampouco a escravidão acabaram 127 anos atrás. Torço para que um dia nossas crianças negras deixem de aprender a agradecer a liberdade exclusivamente a uma princesa branca. Até lá, só nos resta lembrar…

+ sobre o tema

13 de maio: 127 anos após o fim da escravidão, racismo divide a sociedade

Negros relatam seus dramas e mostram que o problema...

Herança africana é alvo de indiferença no Brasil

Falta de investimento em revitalização do Cais do Valongo,...

Pesquisa da UFRB encontra cartas de alforria em cartório de Santo Antônio de Jesus

Estudantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do...

Fotógrafo brasileiro mostra “memória da escravidão” que ficou em Africa

Uma viagem afectiva do fotógrafo e designer gráfico César...

para lembrar

O Brasil precisa acertar as contas com os escravizados

Anúncios da época da escravidão mostram por que o...

Ex-escravos terem tido escravos não foi ‘empreendedorismo capitalista’

Ainda há panos para manga na polêmica em torno...

Brasil tem ao menos 6.000 quilombos, mas age como se fossem invisíveis

"Quilombo é a possibilidade de humanizar corpos negros que...
spot_imgspot_img

Mudar a pergunta é revolução

O assassinato de Genivaldo de Jesus —o homem negro, com esquizofrenia, asfixiado até a morte numa viatura transformada em câmara de gás por policiais rodoviários federais—...

Mulher é resgatada de trabalho análogo à escravidão após 47 anos no RS

Uma força-tarefa conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Defensoria Pública da União (DPU) e Polícia Rodoviária Federal...

Trabalho doméstico tem ‘herança escravista’, diz secretária do governo

O trabalho das empregadas domésticas tem uma "herança escravista", diz a secretária nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Isadora Brandão. Veja destaques...
-+=