Quando uma feminista descobre que vai ser mãe – Por: Adriana Mattoso

Muitos podem dizer que já previam isso. Eu não. Mas posso dizer que sou um pouco devagar, afinal nunca me imaginei casada e cá estou, casada de papel passado e tudo. Outra coisa intrigante para mim foi o meu percurso acadêmico, coisa que nunca me imaginei fazendo. Fiz o meu mestrado com o tema central sobre a repressão sexual entre mãe e filha. Ou melhor dizendo, como as mães reprimem a sexualidade das filhas.

Mas o meu tema não deixava de ser maternidade. Muitas colegas diziam que quando eu fosse mãe eu saberia. Algumas em tom de acusação. Como se o fato de colocar que, mesmo inconscientemente, as mães no geral reprimem a sexualidade das filhas (pelas imposições sociais) me colocasse no hall das feminazis, das feministas intolerantes. Eu trilhei um longo percurso pessoal e acadêmico para perceber que a culpa é mais da sociedade do que da mulher.

Muito aconteceu e eu parei de ver o trabalho como única fonte de realização pessoal. Muitas mudanças radicais na bagagem, um sentimentozinho de não-pertencimento que quer ir embora de qualquer jeito, e então, resultado positivo. Não estava planejando, mas também não posso dizer que estava evitando. Não tomo anticoncepcional há 3 anos. A bomba hormonal e o meu histórico familiar de AVC’s me fez colocar prós e contras na balança. Se eu e o marido estivéssemos tomando mais cuidado, isso talvez não aconteceria.

Mas, por que então eu não evitei? Melhor dizendo, por que nós não evitamos? Pode parecer arrogante, mas acho que o mundo precisa de pessoas melhores. Não querendo dizer que eu seja essa pessoa, mas pelo menos eu tento e não tenho orgulho dos meus preconceitos. Mas na minha cabeça, o mundo precisa de mais homens feministas e mulheres liberais e, porque não dizer: feministas. Mas aí paira o meu maior medo. Será que conseguirei ser esse tipo de mãe? Não acredito, como já disse antes, que a psicanálise seja uma sina, mas sim uma descrição. Mas como fazer para evitar a realidade que ela descreve?

Ao mesmo tempo, como feminista, não posso deixar de me preocupar com a dupla jornada, o mercado de trabalho. Serei eu agora vítima direta do teto de vidro, já que além de mulher, serei mãe? Conseguirei eu realmente voltar a esse mercado, depois de 2 anos ausente? Conseguirei eu manter minha identidade ou passarei a me definir como indivíduo pelo meu papel biológico que se confundirá para sempre com o meu social? Serei a partir de agora Adriana, a mãe de… ou continuarei sendo a pesquisadora, escritora e feminista? Estarei eu feliz com isso?

Será que minha filha poderá viver numa sociedade que não legitime a violência sexual contra ela baseada na sua vestimenta? No horário que sai de casa? Será a minha filha livre? Livre para escolher sua sexualidade sem se achar um monstro? E o meu filho? Saberá ele respeitar as mulheres, olhá-las com igualdade, entender que os papéis sexuais são socialmente determinados e que não devem ser reproduzidos? Será ele também livre para exercer a sexualidade que bem lhe entender, brincar de boneca, colecionar papel de carta?

Tenho, sim, muito medo de ter um filho nesse Brasil que vejo nos jornais, onde apresentadoras cegas incitam a violência contra as maiores vítimas da sociedade. Onde ninguém enxerga os problemas causados pela a associação feita entre dinheiro e prestígio social. Ninguém sabe mais o que são valores, sobretudo aqueles que enchem a boca para falar deles.

Mais ainda: me amedronta ser mãe no país campeão da violência obstétrica, que nega auxílio governamental às mães e ameaça mulheres de cadeia como “política de incentivo” à natalidade, no lugar de buscar medidas para compartilhar o fardo da criação. O país onde 40% das crianças não tem o nome do pai na certidão de nascimento.

Por enquanto são mais dúvidas do que certezas, mas existem algumas sim. Sei, por exemplo, que a criança terá um pai, e feminista. A favor do aborto e que sabe que trocar fralda esporadicamente não é nada. Alguém que sabe o que eu vou sofrer e que pode muito bem ser capaz de trabalhar em casa para cuidar da criança. Não vai ter um pai que “ajuda”, terá um que fará a sua parte. Vai viver num país onde ainda tem gente que se indigna e que faz a sua parte e que sim, são muito necessários.

Não viverá num país onde tudo está previsto e não é preciso ser feito nada. Vai viver num país que ainda é lindo, mas um dia não será mais. Espero que viva para ver a beleza e a alegria que tanto me fizeram falta quando estive longe daqui. Se orientará pelo sol, que sempre nos abençoa, e seu coração baterá nos muito ritmos que temos por aqui: maracatu, afoxé, catira…

Por que eu não desisti de ter um filho? Porque me lembro da minha mãe, antes que a vida a amargasse, no quanto queria ser mais livre, menos presa nas amarras sociais. No meu pai e o quanto seus desejos não combinavam com o machão de classe média que tentava ser. Do meu avô, que me ligava para recitar seus versos de moda de viola e me fazia chorar ao telefone. Da minha avó que dizia: “o emprego é o primeiro marido de toda a mulher”. Da minha outra avó que não conheci e que arranca lágrimas de todos ao ser lembrada, e que dizem, era a minha cara. Do Marcos, que sempre diz: “é a minha opinião” e, em seguida completa com: “eu acho”, para ser bem redundante, mas que tem o sorriso mais lindo e secreto que eu já vi, a alma mais honesta que eu conheci. E comigo, que essa criança terá a tarefa de conhecer por trás do rótulo “mãe” e que se descobrir o ser humano que aqui reside, será bem menos infeliz do que a vasta clientela dos analistas.

E por favor, não respondam as minhas perguntas. A vida está aí pra isso.

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Adriana Mattoso

Uma neurastênica reflexiva em busca de paz de espírito. Atualmente em trânsito, definitivamente sem destino. Para quem interessar, louca por literatura, feminismo e artesanato. Tentando levar todas essas paixões para o plano profissional.

Fonte: Blogueiras Feministas

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