Quanto mudou o teu bairro de infância? E você, ao sair dele?

Cheguei, sem querer, a um filme de uma sensibilidade que chega a doer ligeiro, talvez nem tão ligeiro assim. Resíduo é o nome, realizado por Merawi Gerima, em 2020, com imagens lindas, que mistura memórias do passado e o presente. O protagonista, Jay, de trinta anos, retorna ao seu antigo bairro de infância, em Washinton D.S, para descobrir a que ponto o lugar aburguesou-se. Para a sua surpresa, o bairro negro tinha ganhado nova face com a chegada de proprietários mais ricos e brancos.  Muitas famílias brancas compraram as casas dos antigos moradores negros, fenômeno chamado de gentrificação. 

Gentrificação é o processo pelo qual a população de um bairro de classe trabalhadora dá lugar a um estrato social mais abastado. No Brasil, este processo é recorrente e, a disputa do mercado imobiliário pelas favelas centrais, para a construção de condomínios, como a favela do Moinho, em São Paulo, expulsou e expulsa muitos pobres para as bordas das cidades, lugares de difícil acesso e longe das estruturas urbanas.

Jay é tratado como um estrangeiro pelos antigos amigos e parece que perdeu o lugar no mundo. Alguns poucos moradores negros permaneceram, o que é dolorido de ver. Rostos cansados, apáticos, humilhados pelos brancos, através da indiferença total ou pela polícia, que ronda o bairro. A especulação imobiliária não dá trégua, através do assédio diário para comprar as casas das famílias negras que restaram. 

Jay foi para a Califórnia e tem como projeto fazer um filme sobre a rua onde brincava quando menino, onde tinha muitos amigos na vizinhança, apesar da violência do Estado, das drogas que cooptavam a juventude e dos problemas nas famílias. Mas ele não encontra a maioria, pois, um deles foi preso, o outro assassinado e, o mais próximo, não consegue saber a verdade daqueles que ficaram, que também fora preso e recebera uma condenação de 15 anos. 

A casa da família ainda está lá. Ele e a namorada se instalam por alguns dias e ele começa a ter pesadelos ao lembrar das cenas de violência que presenciou e das conversas com os amigos. Numa das cenas mais emocionantes, ele fala com um homem mais velho que, na época, era adolescente e o protegia no bairro. Este homem demonstra bastante hostilidade para com Jay e, ao ouvir sobre o projeto do filme, responde ter vontade de escrever um livro. Jay, curioso, pergunta sobre o tema e ele responde: “é sobre dois irmãos que eram inseparáveis na infância. Mas um deles foi embora, viver a sua bela vida e o outro ficou aqui, tentando sobreviver e dar conta de tudo.” Neste momento, ele percebe que o amigo está falando dele. Também soube que, ao mudar de casa, para uma maior, em outro bairro, todos os meninos, de bicicleta, foram ver se era verdade que ele tinha melhorado de vida e, ao constatarem, voltaram todos para o bairro, sem que ele jamais soubesse. 

Esta parte do filme dói. Se vê um homem marcado pela violência e a luta diária pela sobrevivência, diante de outro, que ele imagina ter sido poupado, porque foi embora, porque os abandonou.  O racismo, responsável por colocá-los ali e não permitir a saída, está o tempo todo presente na viatura da polícia, que o telespectador apenas ouve a sirene em diversos momentos. Ela não dá um minuto de paz, ronda estes corpos, até que algum menino, rapaz, homem, vacile e caia. E, se não cair por bem, cai por mal, ou seja, a polícia está ali justamente para isto, para tombar corpos negros. 

Fazendo uma comparação com o Brasil, que trago no meu livro Cartas a um homem negro que amei, a periferia onde vivi, na região metropolitana de Belo Horizonte, também me deixou profundas marcas. Era um matagal que só, sem nenhuma infraestrutura, abandonada pelo Estado, único lugar que a minha família pode comprar um barraco. Não tinha violência no início, pois, na rua, contávamos com cinco ou seis famílias, o resto era tudo mato, sem água encanada, asfalto, transporte público e iluminação. Até hoje, o barulho das cigarras lembra-me abandono, pois, sem luz, nem a televisão podíamos assistir. Com o passar dos anos, as pessoas foram chegando, chegando, chegando. E haja gente! O bairro cresceu, assim, todo “desplanejado”, com um monte de excluídos, trabalhadores mal remunerados, deixados à própria sorte. A criminalidade aumentou e, teve até projeto para transferir uma cadeia para lá teve, afinal, estruturas assim não podem chegar em bairro de rico, de pobre, sim. O meu antigo bairro, hoje, é considero um dos mais perigosos e, a polícia, que nem lembrava que existíamos quando eu era pequena, agora não sai de lá. O Estado chega somente para produzir cadáveres. 

Eu daquele lugar ainda na adolescência, para um bairro de classe média, numa região mais central. Anos atrás, passando de carro por dentro dele, tal foi a minha surpresa ao perceber o abandono e a diferença da população. Tinha se tornado um bairro popular. As antigas famílias não estavam mais lá, a minha geração foi, quase toda para os condomínios fechados e os idosos tinham falecido. E, a cidade muda assim, tirando o dinheiro de um bairro e migrando para outro. Os centros das cidades, uma vez ocupado pela classe média, estão abandonados, à mercê da especulação imobiliária. As prefeituras locais e os governos, por causa da ideologia neoliberal, deixam o mercado seguir o seu curso, sem interferência na paisagem urbana. 

No meu segundo romance, Ensaio sobre a raiva, abordo a questão do deslocamento das classes populares, todos os dias, para as áreas “nobres” das cidades. O povo é o único que se movimenta no tecido urbano, a classe média, apenas em zonas feitas para a ela, assim como a burguesia, que a gente nem chega a ver. O cruzamento de fronteiras de classe e raça, diariamente, deixa impactos psicológicos que são pouco subestimados. Por exemplo, no filme, vemos a maneira com que os jovens negros se cumprimentam, muito parecido com a nossa juventude das favelas. Enquanto, os brancos, desconfiados, até mudam de calçada quando avistam um corpo negro, sobretudo masculino. A nossa gente tem que lidar com olhares de desprezo, desconfiança e voltar para os seus barracos no fim do dia, sem elaborar esta humilhação diária. 

Jay está indignado com a indiferença dos brancos que ocuparam o seu antigo bairro a ponto de enfurecer-se com dois jovens brancos que, ao vê-lo, sem nenhum motivo aparente, atravessa a rua e passa para o outro lado. Jay não se controla e os segue, espancando um deles enquanto o outro foge e chama a polícia. Ah, a polícia! Impressionante a velocidade com que ela chega e persegue o jovem negro. O filme termina assim, dois homens armados e fardados que correm atrás de Jay. Como se quisesse dizer: agora sim, você voltou ao bairro.


Fabiane Albuquerque é socióloga, escritora e feminista negra.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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