Quem mandou matar Emilly e Rebeca?

Chega um tempo em que a dor não basta. Chega um tempo em que nossos ombros negros suportam o mundo e, como escreveu Drummond, “ele não pesa mais que a mão de uma criança”. Se pudéssemos parar o tempo, as primas Emilly Victoria Silva dos Santos, 4, e Rebeca Beatriz Rodrigues dos Santos, 7, ainda estariam ali brincando na porta de sua casa em Duque de Caxias (RJ), e não atravessadas pelo genocídio em curso. Uso o termo em sua acepção jurídica: homicídio com intenção de destruir, no todo ou parte, pobres e pretos.

Chega um tempo em que devemos recusar escrever elegias, porque num mundo onde a morte de crianças pretas é uma ordem que as dilacera, resta lutar por justiça. Justiça, escrevera Cornell West, é como o amor se apresenta em público. Balas não são perdidas, porque sempre acham os mesmos corpos negros para os quais foram disparadas. Esvaziar a necrópole da intencionalidade genocida que a caracteriza corrobora para sua banalização: quem mandou matar Emilly e Rebeca?

Esta não é mais uma coluna de jornal com generalidades bem intencionadas sobre racismo; é uma coluna sobre justiça; é uma coluna que pergunta quem responderá por genocídio. A proteger o fuzil que matou Emilly e Rebeca há um exército inteiro de cidadãos de bem fardados e engravatados. Quero o governo do Rio de Janeiro e o alto escalão da Polícia Militar ao vivo na TV em cadeia nacional a responder 15 perguntas sobre genocídio negro.

Ao governador do Rio de Janeiro, perguntemos: 1) Governador autorizou ou foi informado da operação policial? 2) Contatou as famílias das vítimas e pretende repará-las ex officio (por exemplo, indenização vitalícia)? 3) O que governo fez em cada uma das mortes de crianças em operações envolvendo polícias do RJ em 2020? 4) Cooperou com a Alerj e Judiciário para investigar mortes envolvendo policiais, crime organizado e milícias? 5) Ministério Público foi informado do caso e está acompanhando em cumprimento à resolução 129/2015 do Conselho Nacional do MP?

Ao alto escalão da PM-RJ, perguntemos: 6) Quem autorizou a operação, qual o seu objetivo tático e o seu resultado para segurança pública? 7) Operação foi realizada em descumprimento à decisão do STF que restringe operações policiais na pandemia (ADPF 635)? Se sim, quem responderá por desrespeito à ordem judicial? 8) Policiais envolvidos na operação foram afastados? Qual o histórico de violência deles? 9) Caso será investigado pela Corregedoria sem envolvimento dos policiais da operação?

À Polícia Civil do RJ, perguntemos: 10) Foi realizada perícia do local do suposto confronto, com ou sem a presença das vítimas? 11) Foram apreendidas as armas dos policiais e submetidas à perícia? Se sim, quais as conclusões? 12) Houve a descrição minuciosa de todas as circunstâncias relevantes nos corpos das vítimas? 13) Foram colhidos todos os registros sobre a movimentação das viaturas envolvidas na ocorrência, inclusive quanto tempo demorou o socorro? 14) Estão sendo produzidas provas além das palavras dos policiais da operação?

Chega um tempo em que o choro não dá conta da dor. Nossa dor preta transborda e nos inunda de desesperança e sede por Justiça. Vinte e duas crianças foram mortas baleadas em 2020, segundo dados do Fogo Cruzado. “Metrópoles sufocam, são necrópoles que não se tocam, então se chocam com o sonho de alguém. São assassinas de domingo a pausar tudo que é lindo”, escreveu Emicida.

Chega um tempo em que nos resta apenas responder a uma última pergunta: quem responderá pelo genocídio em curso?

 

Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
Fonte Por Thiago Amparo, da Folha de S.Paulo

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