Quilombo teatral, companhia Os Crespos faz 15 anos de luta antirracista

2004, Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP). Cinco alunos negros se encontram na mesma turma da consagrada instituição de ensino superior. Era algo inédito: eles representavam 25% da concorridíssima classe de apenas 20 alunos. No ano seguinte, outros quatro chegavam ao curso que não tinha sequer uma disciplina voltada para a história ou expressão do corpo negro nos palcos, no cinema ou nas novelas. Era urgente mudar esse cenário.

Enquanto a USP se negava a promover diversidade por meio de ações afirmativas no vestibular, surge entre aqueles estudantes a proposta de criar um grupo de pesquisa para mexer nas aulas e na grade curricular de ensino. Não negros foram convidados a discutir a óbvia lacuna. Mas apenas negros participaram da iniciativa. Nascia, assim, a companhia Os Crespos, o primeiro grupo contemporâneo de teatro negro em São Paulo e o mais longevo quilombo do setor na cidade, que completa 15 anos.

Intervenção de 2006: grupo surgiu no ambiente universitário, muitas vezes hostil às demandas de estudantes negros. Na USP, a grade curricular concentrava os estudos em autores e produções eurocêntricas e ignorava a produção cultural de grandes nomes do teatro negro como Abdias Nascimento e Solano Trindade (Foto: Acervo Cia os Crespos)

Corta para 2020. “Sim, mudamos a cena de forma irreversível e há perspectivas para o amanhã”, reconhece a atriz Lucelia Sergio, uma das fundadoras da Cia Os Crespos. Aos 37 anos, a também diretora e arte-educadora fala  da trajetória do grupo que abriu espaço, na marra, nos palcos da cidade. “Fazemos parte de uma longa luta que começou com nossos antecessores. Hoje, uma dramaturgia responsável não nos impõe mais papéis desgastados no tempo pelo racismo.”

Além de seis espetáculos, a Cia realizou onze intervenções urbanas e foi a responsável pela realização da primeira Mostra de Teatro Negro de São Paulo. No audiovisual, a equipe ainda acumula premiações nos curtas metragens “D.O.R”, “Nego Tudo” e “Ser ou Não Ser” e produziu duas edições de mostras de cinema. Lançou, ainda, uma revista, a Legítima Defesa, voltada para a crítica, opinião e protagonismo negro dentro da arte. O terceiro exemplar será publicado neste ano.

A celebração dessa caminhada, mesmo com a pandemia que fechou os teatros, poderá ser prestigiada pela internet. A mostra “Os Crespos 15 Anos” vai promover, pelo facebook do Teatro Arthur de Azevedo, encenações de quatro espetáculos, diretamente do palco,  que consagraram Os Crespos.

Além do infantil “Os coloridos”, com personagens baseados em mitos e contos africanos, afro-brasileiros e indígenas, haverá exibição online da “Trilogia dos Desmanches aos Sonhos”. Formadas pelas montagens “Cartas a Madame Satã ou me desespero sem notícias suas”, “Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas” e “Além do Ponto”, registram  impacto da escravidão na maneira de amar dos brasileiros. (Ao final da reportagem, confira a agenda completa com todos os links).

No próximo dia 25, pelo Instagram do Centro Cultural São Paulo, o grupo promove mais uma edição das chamadas “Terças Crespas”. O projeto nacional de encontro de artistas do teatro, da dança, da literatura, do cinema, da música e da performance já recebeu expoentes de diferentes gerações e é uma articulação em rede para fortalecer as manifestações negras em todo o país.

Tamanha atividade dialoga com as primeiras investigações do grupo sobre os talentos negros invisibilizados pelo racismo. O ator Sidney Santiago Kuanza, de 35 anos, co-fundador da companhia, recorda dos estudos em grupo da obra do poeta Solano Trindade (1909-1974). Além de autor, ator e teatrólogo, Solano foi folclorista, pintor, cineasta e criou de um grupo popular de teatro que deu origem a uma casa de espetáculos em Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. Na universidade, porém, nada disso era estudado.

Nem mesmo a produção de Abdias do Nascimento (1914-2011) era contemplada. O dramaturgo, ator, poeta, escritor, artista plástico, professor universitário e militante antirracista, foi o percussor do teatro negro brasileiro e inovou em narrativa e estética. Criador do Teatro Experimental do Negro, o TEN (1944-61), Abdias “trouxe a necessidade de pensar o teatro como uma rede extensa que pode estar a serviço das liberdades individuais e da luta coletiva pela emancipação de um povo,” explica Sidney, ressaltando a importância dos conceitos do intelectual na construção de Os Crespos.

Sidney em”Cartas a Madame Satã ou me desespero sem notícias suas”, de 2014. O monólogo sobre a homoafetividade traz manifestos poéticos, sambas e brinca com estereótipos que expõem questões políticas.Sidney em”Cartas a Madame Satã ou me desespero sem notícias suas”, de 2014. O monólogo sobre a homoafetividade traz manifestos poéticos, sambas e brinca com estereótipos que expõem questões políticas. (Foto: Acervo Cia. Os Crespos)

Foi a partir do livro “Quarto de Despejo”, obra de 1960 da escritora e ex-catadora de papel Carolina Maria de Jesus, que a companhia lançou seu primeiro espetáculo. “Foi uma descida profunda na ‘negrura’, na dor. Sobretudo nas estratégias de sobrevivência da mulher que foi esquecida e apagada da história do nosso país, mesmo ela tendo nos anos 60, vendido mais livros que o escritor Jorge Amado,” comenta Sidney.

“Ensaio Sobre Carolina”, de 2007, foi um tremendo sucesso. Os alunos convidaram para a direção o único professor negro da EAD daquela época, José Fernando Peixoto de Azevedo. Filas se fizeram na portas dos teatros e o espetáculo ficou em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro por três anos. A montagem ainda ganhou prestígio internacional depois de um ensaio aberto em Berlin, na Alemanha.

Os registros da montagem da peça de teatro estão no filme do “Ensaio Sobre Carolina”, que vai ser exibido no feriado de 7 de setembro, às 19h, no canal do Youtube da Biblioteca Mário de Andrade (Foto: Acervo Cia. Os Crespos)

A dificuldade de ser e fazer teatro negro no Brasil, no entanto, está longe da equidade. Incentivo financeiro, público ou privado, sempre foi e ainda é assunto que exige muita revisão. “Existia, sim, um monopólio de artistas, companhias e produtoras brancas que historicamente faziam uso desse recurso até a nossa chegada”, recorda Sidney, pontuando a contribuição da companhia no questionamento das bancas de seleção de projetos. Os Crespos foram os primeiros do teatro negro a vencer concorrências de editais. “Embora não seja vetada a presença de proponentes negros, existia uma ideia posta subjetivamente de que essas disputas de verba não eram para todos.”

Acessar os patrocínios do setor privado, com excessão de instituições como o SESC, ainda é um grande desafio. “Lidamos bem com nossa existência, não lidamos bem é com a necessidade de invisibilização dos nossos corpos”, resume Lucelia. “De todo modo, agora outras pessoas estão tendo de lidar com a nossa existência, os críticos, os programadores, os gestores, a ‘classe teatral’. Viramos pauta por nós mesmos.” E exemplo para as próximas gerações também.

Thyanny, no centro da imagem: nova geração segue a caminhada. “Teatro negro está na rua, na internet, um público que não frequentava teatros já assimilou que a arte faz parte da nossa vida nas batalhas de rap, nos eventos em que pessoas pretas se encontram”(Foto: Acervo pessoal)

Nascida em Cuiabá, Mariana Lopes, de 24 anos, estuda artes cênicas em São Paulo e vê o compromisso político e social do teatro negro como um elemento transformador da identidade negra. “O Teatro Experimental do Negro, de Abdias, já trazia essa dimensão ao mostrar  a operários e empregadas domésticas que eles podiam fazer arte.” Para ela, Os Crespos trilham esse mesmo caminho ao espelhar o cotidiano negro em suas peças. “Foi isso que despertou meu interesse pelo assunto, me fez reconhecer como uma pesquisadora e ao mesmo tempo me tornar uma brincante dos jogos teatrais e ver o afrofuturismo, também, como uma proposta artística de busca por saúde mental”, conta Mariana.

Ontem, hoje e amanhã: ilustração do designer do grupo, Rodrigo Kenan, que também desenvolve a iconografia afroturista específica da companhia

Em Florianópolis, a atriz Thuanny Paes, de 25 anos, faz mestrado em teatro negro e inspira-se no grupo. “Ver essas mudanças, acompanhar essa resistência e crescimento, é gratificante. Porque teatro negro não é uma fase, é uma luta diária”, define. Ativista do movimento negro e produtora do coletivo NEGA, que existe há 10 anos, ela pontua que nada mais mais segura a ocupação dos palcos por atores e profissionais negros.

“O teatro negro está na rua e na internet, alcança um público que não frequentava esse lugar mas já assimilou que a arte faz parte das nossas vidas nas batalhas de rap, nos saraus e nos eventos onde pessoas pretas se encontram”, testemunha Thuanny. E, assim, sendo o teatro o espelho da sociedade, os 15 anos de resistência antirrascista da companhia Os Crespos mostram que não faltam narrativas poéticas negras para subir aos palcos por seus próprios representantes ou público de todo tipo para prestigiá-las. O que falta, e muito, ainda, é o reconhecimento de tamanha riqueza.

Agenda

25/08, 19h30, terça – Encontro do “Terças Crespas”, dessa vez com a bailarina Eduarda Lemos (PE), a atriz Gabriela Loran (RJ) e o dramaturgo Daniel Veiga (SP), artistas trans negras da nova geração – Pelo Instagram do Centro Cultural São Paulo

29/08, 20h, sábado – Espetáculo Infantil “Os Coloridos” com Lucelia Sergio, Ramon Zago e suas filhas Negra Rosa e Tereza Flor no Facebook do Tendal da Lapa – @Cctendaldalapa 

De 30/08/20 a 19/09/20 – “Mostra Os Crespos 15 Anos”, do palco Teatro Arthur de Azevedo,

  • Infantil “Os Coloridos” (Domingos: 30/08, 06 e 13/09 – sempre às 16h)
  • Trilogia dos Desmanches aos Sonhos: “Cartas a Madame Satã, ou me desespero sem notícias suas” (Sáb, 05/09), “Engravidei, Pari Cavalos e Aprendi a Voar sem Asas” (Sáb, 12/09), “Além do Ponto” (Sáb, 19/09), sempre às 21h.

 

 

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