Nos arredores das grandes cidades, escravos fugitivos plantaram comunidades clandestinas que sobreviviam do intercâmbio com os negros libertos. Os redutos se tornaram focos de resistência na luta abolicionista
Márcio Sampaio de Castro
Era o ano de 1880. Pelas acanhadas ruas de São Paulo, um negro descalço e vestindo calça de algodão carrega um pedaço de pau com quatro galinhas amarradas nas extremidades. Ao dobrar a esquina, ele se depara com uma patrulha policial. Sua trajetória é, então, bruscamente interrompida. Os oficiais querem saber a quem o homem pertence e o que faz por ali. Com duas ou três respostas muito bem decoradas, o escravo disfarçado se livra da patrulha e segue seu caminho. Deixa a mercadoria no Largo do Rosário com uma quituteira, também negra, e rapidamente desaparece no meio da multidão que transita por ali, encaminhando-se para as bandas do riacho Saracura.
Nas metrópoles emergentes no final do século 19, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, já era quase impossível diferenciar quem era escravo, ex-escravo ou fugitivo. A portuária Santos, por exemplo, contava com cerca de 10 mil negros fugitivos que conviviam com uma população oficial de 13 mil pessoas. A presença de tantos fujões nas cidades produziu o fenômeno menos conhecido da história da escravidão no Brasil: os quilombos urbanos. O Saracura, para onde nosso personagem escapou no início dessa reportagem, hoje o bairro da Bela Vista (também chamado de Bexiga), era um desses recantos em que os escravos que escapavam da servidão se aproveitavam da vasta vegetação de mata atlântica para montar abrigos e esconderijos. Ali, estavam livres para cultuar seus deuses, fazer música, pequenas roças e criar animais, que depois eram vendidos ou trocados nos mercados locais. Um ato de rebelião que se renovava todo santo dia.
Ao contrário dos chamados quilombos de rompimento, como o de Palmares, que se caracterizavam por se assentarem em locais distantes, com o objetivo de evitar caçadores de recompensa e, ao mesmo tempo, romper com o modelo de civilização européia, tentando recriar o mundo africano, os quilombos urbanos pareciam pequenos povoados. Localizados bem próximos das cidades, tinham casas de pau-a-pique, construídas com barro e pequenos troncos de árvores. Plantados em clareiras na mata, os casebres eram rodeados pelas criações de cabras, galinhas, porcos e animais de estimação. Com o tempo, os quilombolas fizeram pequenas roças de milho e mandioca, sem dúvida, um traço da influência indígena. “No modelo tradicional de resistência à escravidão, o quilombo de rompimento, a tendência dominante era a política do esconderijo e do segredo de guerra. Por isso, os quilombolas esforçavam-se para proteger o seu dia-a-dia, sua organização interna de todo tipo de forasteiro”, diz o pesquisador da Fundação Casa de Ruy Barbosa do Rio de Janeiro, Eduardo Silva. “Já os quilombos urbanos eram dormitórios dos negros fugitivos que tentavam a sobrevivência nos mercados e portos das cidades”, completa.
Os esconderijos urbanos proliferam com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808. O boom aconteceu principalmente nas cidades portuárias como Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Pelotas. Por quê? Ora, porque agora era preciso mais mão de obra. A economia local havia ganhado impulso com a chegada da corte, e, com o empurrão financeiro, crescia também o número de negros “importados” da África. Bastava um passeio pelas ruas do Rio de Janeiro, por exemplo, para perceber o frenesi. No porto, os escravos perambulavam de um lado para o outro carregando sacas dos navios para o cais. Já no centro da cidade encontravam-se os chamados escravos de ganho, que trabalhavam como marceneiros, sapateiros, prostitutas, quitandeiras ou carregadores. No final do dia, eles levavam o dinheiro arrecadado para os seus senhores. No meio dessa massa misturavam-se os negros libertos e fugitivos das fazendas – ou seja, os habitantes dos quilombos urbanos.
Esses agrupamentos de negros fujões tirou o sono dos poderosos. Preocupados com as concentrações clandestinas de negros, as autoridades espalhavam capitães-do-mato (caçadores de escravos fugidos), patrulhas policiais e até o Exército pelos subúrbios com a missão de descobrir e destruir os esconderijos. “As aglomerações ficavam a quatro, cinco quilômetros da cidade, encravadas no alto dos morros ou nos vales”, diz o professor Wilson do Nascimento Barbosa, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP.
Dois bons exemplos que demonstram o pânico causado pelos quilombos urbanos estão em correspondências expedidas por autoridades coloniais. Em 1791, o governador de São Paulo, Bernardo José Maria Lorena, ordenou ao seu capitão-mor que transmitisse instruções aos “capitães de suas ordenanças”. Sua exigência: espalhar soldados com armas de fogo a fim de “prender ou matar os negros dos quilombos, que tanta desordem andavam fazendo na cidade”. Em 1807, o governador da Bahia, João de Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes de Brito escreveu de Salvador para o Conselho Ultramarino em Portugal: “Sendo muito freqüentes as deserções de escravos do poder de seus senhores, entrei na curiosidade de saber que destino seguiam, e sem dificuldade, conheci que os subúrbios desta capital, onde são inumeráveis os ajuntamentos desta qualidade de gente”.
Com tanto burburinho, os quilombos urbanos tornaram-se, ao mesmo tempo, mais atraentes e mais perigosos para os negros que ali se refugiavam, já que caçar negros virou um negócio lucrativo para os cidadãos livres. Tanto que o que mais rendia anúncios para as seções de classificados dos jornais eram exatamente os valores oferecidos pela captura de um fugitivo. “Para uma pessoa pobre, fosse branca ou mulata, prender um cativo fujão era uma ótima forma de ganhar uns trocados, o que unia a população livre contra o escravo fugitivo”, afirma o pesquisador Mário José Maestri Filho, da Universidade de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.
No meio de tantos delatores, os negros fugitivos podiam contar com os escravos de ganho e com os africanos que já tinham conquistado a liberdade. Eles davam um jeitinho de camuflar os companheiros. A estratégia era bastante simples: misturavam-se uns aos outros nos mercados para que o trabalho de repressão ficasse difícil. Na bagunça, tornava-se quase impossível saber quem era quem. Alguns comerciantes também colaboravam com os fujões. Para eles, era vantajoso manter os fujões por perto. Em troca do silêncio, exploravam a mão de obra, além de comprar produtos baratos dos quilombos.
Enquanto as aglomerações de negros tomavam conta dos subúrbios das cidades, a abolição da escravatura passava a fazer parte das rodas de conversas dos intelectuais, dos políticos, de integrantes da classe média urbana e até da elite econômica, que, timidamente, começava a criar estratégias para pressionar pelo fim do regime servil. A primeira vitória dos defensores da liberdade dos negros foi uma nova legislação que entrou em vigor em setembro de 1850, graças à pressão da coroa britânica. Por motivos econômicos, os ingleses vinham perseguindo e dificultando a vida dos traficantes de escravos desde o início do século.
A nova lei, denominada “Eusébio de Queiroz”, previa penas para o tráfico negreiro que iam da apreensão dos navios e suas “cargas” até a prisão de todas as pessoas que fossem flagradas participando desse tipo de negócio. Um golpe dramático para os fazendeiros e demais escravocratas. Por outro lado, a Guerra do Paraguai (1865-1870), onde milhares de combatentes negros lutaram pelo Brasil, fez com que muitos militares se tornassem também simpáticos à causa. O resultado disso tudo é que as ações abolicionistas encontravam cada vez menos resistência e repressão. Estavam criadas as condições para que surgisse um novo tipo de quilombo urbano, o quilombo abolicionista.
Essa forma de organização dos escravos apresentava diferenças marcantes dos quilombos de rompimento, localizados no interior do país. Eram comandados por líderes que mostravam a cara e brandiam a bandeira da abolição sem medo. “Os líderes eram cidadãos livres, com documentação civil em dia e muito bem articulados politicamente. Não se tratava mais dos guerreiros do modelo anterior. Agora a liderança representava uma espécie de ponte entre a comunidade de fugitivos e a sociedade”, diz o historiador Eduardo Silva. Integrantes do movimento abolicionista, como André Rebouças e Antonio Bento, por exemplo, incentivavam a formação dos quilombos abolicionistas. E, entidades como a Confederação Abolicionista, localizada no no Rio de Janeiro, e os Caifazes, da cidade de São Paulo, promoviam e apoiavam as fugas em massa das fazendas. Depois de viajar de trem, amontoados em charretes ou mesmo a pé, os negros desembarcavam nos principais quilombos abolicionistas: Petrópolis, na serra Fluminense; Leblon, no Rio de Janeiro; Cupim, em Recife, e Jabaquara, em Santos. Esse último chegou a ter cerca de 10 mil escravos.
Nos anos que se seguiram, muitos quilombos abolicionistas pipocaram país afora. E, a presença crescente desses quilombolas nas paisagens urbanas somada à intensificação dos movimentos de libertação, à facilidade cada vez maior para os deslocamentos dos negros e à diminuição das perseguições resultaram no fim, de fato, da escravidão no Brasil. Quando, em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a famosa Lei Áurea, a liberdade já fazia parte da vida da população negra. A lei só oficializou uma realidade conquistada a duras penas. O Brasil foi o último país do Ocidente a acabar com o regime servil.
Flores e heróis
Leis ou força bruta, valia tudo na batalha pela abolição da escravidão
Nos últimos anos de escravidão no Brasil, a camélia virou o símbolo que identificava os simpatizantes da causa abolicionista. Usar a flor na lapela, plantá-la no jardim ou dá-la de presente era considerado um ato de ativismo político.
A idéia nasceu na Confederação Abolicionista. Formada por políticos, por homens ricos como Joaquim Nabuco e João Clapp e por negros livres e intelectuais como José do Patrocínio e André Rebouças, a entidade tinha ramificações país afora. Seu principal foco de ação era o Rio de Janeiro. Para lutar pela liberdade, valia tudo, desde as tribunas do parlamento, passando pelos jornais, compra de alforrias e até o incentivo às fugas.
Uma das páginas mais interessantes do abolicionismo foi escrita em São Paulo por Luis Gama, também um símbolo da abolição. Filho de uma africana com um fidalgo português, Gama viveu como escravo até a adolescência, apesar de sua mãe ter conquistado a liberdade quando ele nasceu. Após conseguir fugir das garras da servidão, formou-se em Direito.
Baseado em uma lei de 1831, que proibia o contrabando de escravos para o Brasil, Gama percorreu a província, defendendo cativos nos tribunais. Com eloqüência conseguiu libertar mais de 500 pessoas. Faleceu em 1882, aos 52 anos.
As ações jurídicas de Gama abriram espaço para atitudes muito mais radicais. O também advogado Antonio Bento e seu grupo, o “Caifazes”, por exemplo, percorriam as fazendas paulistas libertando e levando negros para os quilombos urbanos. Em 1886, os movimentos abolicionistas promoveram uma fuga em massa de várias fazendas.
Era o início do fim da escravidão.
Mundo marginal
Os velhos quilombos viraram os quartéis-generais da cultura africana
Com o fim da escravidão, os quilombos urbanos não desapareceram da paisagem das cidades. Só se transformaram. Segundo a urbanista Raquel Rolnik, do Ministério das Cidades, os antigos redutos de resistência à escravidão viraram “territórios negros”, onde as tradições herdadas dos africanos floresceram. Manifestações como a capoeira, o batuque, as danças de roda e o culto aos orixás, práticas malvistas pela sociedade, encontraram nesses locais um porto seguro. “A organização espacial do terreiro, da família matriarcal, unicelular, era vista pelas autoridades como cortiços que precisavam ser eliminados. Os espaços dos quilombos continuaram sendo estigmatizados”, diz Rolnik.
Mesmo com a perseguição, os bairros que nasceram sobre as ruínas dos velhos quilombos – Liberdade, em Salvador; Gamboa e Serrinha, no Rio de Janeiro, e Bexiga e Barra Funda, em São Paulo – tornaram-se berços das escolas de samba, dos grupos de jongo, dos templos de cultos africanos e das rodas de tiririca, nome antigo da capoeira.
Se não chegavam a ser guetos exclusivamente ocupados por descendentes de escravos eram pontos de encontro para a celebração de sua cultura. Ao mesmo tempo que serviam de quartel-general da cultura afro, as vizinhanças negras ganhavam a imagem de redutos marginais. Como os descendentes dos escravos tinham dificuldade para conseguir empregos no comércio ou nas indústrias, acabavam envolvidos em atividades ilícitas.
A situação atingiu tamanha proporção, que, em 1937, o então ditador Getúlio Vargas baixou um decreto que obrigava – principalmente as indústrias – a contratar “brasileiros”. “A idéia do malandro, do vagabundo, da prostituta e dos jogos de azar acabou se associando aos negros e ao submundo da pobreza para o qual eles foram empurrados”, afirma o historiador Wilson Barbosa, professor da USP.
Saiba mais
Livros
As Camélias do Leblon, Eduardo Silva, Companhia das Letras, 2003 – O funcionamento dos movimentos abolicionistas, com destaque para a Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro e para o quilombo urbano do Leblon
Rebelião Escrava no Brasil, João José Reis, Companhia das Letras, 2003 – A revolta dos negros malês, ocorrida no início do século 19, em Salvador
Rebeliões da Senzala, Clóvis Moura, Mercado Aberto, 1988 – Primeiro a abordar e mapear os quilombos
Fonte:História Viva