“Quando termina uma epidemia?” Essa tem sido uma questão recorrente para vários setores da sociedade e foi tema de artigo recente do cientista político Gilberto Hochman. Arriscando uma resposta direta, mas não simples, uma epidemia só termina quando todos os seus efeitos podem ser medidos e avaliados, para que seja possível se realizar a retrospecção do ocorrido – última fase da chamada “dramaturgia das epidemias” elaborada por Rosenberg e recorrentemente citada por historiadores. Nesta fase ocorre o abrandamento do surto, a avaliação e reflexão coletiva sobre o evento e a adoção de medidas sanitárias permanentes. O fim de uma epidemia, portanto, depende de muitos fatores, constituindo-se como um processo ao mesmo tempo social, político, biológico e cultural.
No cenário caótico da pandemia de Covid-19, que eclodiu no final de 2019, uma das contribuições mais ativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem sido chamar atenção para a relação do episódio epidêmico e as questões ambientais. Em entrevista ao El País, a médica María Neira, diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da OMS, afirmou que “70% dos últimos surtos epidêmicos começaram com o desmatamento”. Portanto, a agência tem discutindo o fato de ser inevitável o surgimento de novas epidemias, caso não sejam tomadas medidas imediatas para mitigar os impactos das pressões humanas sobre o meio ambiente.
Em particular a pecuária e a agricultura em larga escala, a grande emissão de dióxido de carbono pelas indústrias e a queima de combustíveis fósseis têm sido os grandes responsáveis pelo agravamento da situação. Alguns dos impactos são irreversíveis. O desequilíbrio ecológico expõe as populações humanas a situações de vulnerabilidade epidemiológica diante do contato com novos agentes patológicos, mas também revela aspectos culturais da nossa sociedade que precisam rapidamente ser repensados. Tal qual a forma como temos nos relacionado com o planeta e o modo como enfrentamos marcadores da diferença entre as populações humanas.
Embora seja recorrente o tom de surpresa sobre epidemias, sua relação com o grave cenário de degradação ambiental e a maior vulnerabilidade epidemiológica de populações pobres, esses elementos estão imbricados em nossa história. Existem semelhanças óbvias entre a epidemia de Covid-19 e outras emergências epidêmicas que já ocorreram. Estudos em história da saúde pública revelam, por exemplo, no que diz respeito aos impactos causados por epidemias e outras doenças infectocontagiosas, que apesar da interdependência sanitária existente entre todos os setores da sociedade, os efeitos de uma doença não são sentidos universalmente.
Os segmentos mais pobres da sociedade seguem sendo os mais afetados. Nesse sentido, uma das principais contribuições da História implica em identificar as condições sociais que, historicamente, tornam essa parcela da sociedade mais vulnerável em cada conjuntura. A experiência de duas epidemias provocadas por subtipos do vírus Influenza que ocorreram no século XX, a epidemia de 1918 (H1N1) e a de 1957 (H2N2), conhecidas, respectivamente como “gripe espanhola” e “gripe asiática” caminham neste sentido.
Nas duas ocasiões o Brasil vivia momentos completamente distintos, por isso, comparações entre os dois episódios epidêmicos exigem cautela. Se em 1918, o país contava com uma população de cerca de trinta milhões de pessoas e, em termos de saúde pública, os estados brasileiros se percebiam dispersos e mal articulados, em 1957, por sua vez, o país já contava com uma população de sessenta milhões de habitantes. E um Ministério da Saúde. Entretanto, esse aspecto não significou que o Ministério teve proeminência durante a emergência sanitária de 1957, pois não foi possível, por exemplo, a vacinação em larga escala para toda a população.
A epidemia de 1918 é reconhecidamente uma das mais letais da história. As estimativas indicam entre 20 e 100 milhões de óbitos no mundo. Quarenta anos depois, ocorreu a epidemia de 1957, que teve grau de letalidade inferior a primeira. Nesse último período, a sociedade pôde produzir respostas eficazes à situação especialmente devido à tecnologia biomédica. O mundo já contava com antibióticos e vacinas contra o vírus influenza que, por sua vez, foi identificado e isolado por cientistas britânicos apenas na década de 1930. A vacina contra a epidemia de 1957 foi desenvolvida no mesmo ano na Inglaterra e se tornou a principal aposta das autoridades mundiais de saúde no controle da epidemia. A estimativa é que essa doença tenha levado a óbito em todo mundo entre 2 e 4 milhões de pessoas.
O elo comum entre os dois episódios epidêmicos, sem dúvida, refere-se a dimensão ecológica, pois as epidemias são resultado direto das relações entre seres humanos e aquilo que Donna Haraway chamou de outras “espécies companheiras”, com as quais compartilham o mundo – e agentes parasitários como os vírus são uma delas. Em 1918 o país vivia a busca pela modernização, especialmente no que se referia à construção de obras civis e ferrovias para integrar os seus vastos sertões – processo que não trouxe apenas os resultados desejados, mas também impactos ambientais e problemas de saúde pública. Nos anos 1957, em perspectiva semelhante, o país seguiu apostando na construção de grandes obras civis e os efeitos também não se deram apenas em termos econômicos e sociais, mas em relação ao meio biofísico brasileiro e, consequentemente, na saúde da população.
Os dois episódios epidêmicos se assemelharam ainda na adoção de aplicação de medidas de controle, tais como quarentenas e isolamento social. Também no fato de sua alta incidência ter sido principalmente sobre os setores mais pobres da população. Na cidade do Rio de Janeiro, capital federal durante a epidemia de 1918, apesar da impressão difundida na época de que nenhum bairro ou camada social escaparia da doença – aspecto que teria lhe dado o epíteto de democrática –, a carência de recursos, principalmente entre as classes pobres, determinou que elas fossem as mais atingidas. Até mesmo por serem menos beneficiadas pelas ações sanitárias, que deram preferência ao centro carioca.
Durante a epidemia de 1957, a “geografia da gripe” atingiu as favelas do Rio de Janeiro e estados nordestinos como Ceará e Maranhão. Como foi frisado na imprensa brasileira, as pessoas temiam e morreram não apenas pela doença, mas também pela fome. O jornal maranhense O Pacotilha em edição de 28 de agosto de 1957, no artigo intitulado “Singapura”, um dos nomes pelo qual a pandemia de 1957 ficou conhecida, destacou que “[…] chegava a ser ridículo o pregão antigripal que recomendava o uso de alimentação abundante como preventivo da ‘asiática’, quando, por acréscimo, nenhum passo era dado pelos órgãos categorizados no sentido de tornar acessível ao povo o abastecimento de gêneros de mais gritante necessidade”.
A história tem discutido que durante epidemias, seja a atualmente em curso ou nas anteriores, mais do que as tecnologias disponíveis, é preciso considerar aspectos que, em cada conjuntura, seguem contribuindo para aumentar exponencialmente os efeitos da doença sobre os mais pobres. Ao lançar luz sobre as condições estruturais e culturais do país, o conhecimento histórico nos ajuda a refletir e compreender em que medida as respostas apresentadas no contexto atual são eficientes. Uma constatação a partir disso é o fato de que as sistemáticas deficiências no saneamento básico, na falta de campanhas educativas, de políticas públicas de assistência, de acesso aos recursos naturais, entre outros aspectos fundamentais para boas condições de vida, tem nome e configuram o chamado “racismo ambiental”.
Embora o termo seja recente, o racismo está entranhado não apenas nas instituições e relações do trabalho, mas também na forma como interagimos com o meio biofísico. O racismo ambiental relega, sistematicamente, às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais e aos bairros operários a situações de risco, como a falta de habitação adequada, falta de saneamento básico, exposição a maiores resíduos industriais tóxicos e ilegais. Elementos que são fundamentais nas condições que, eventualmente, podem favorecer a proliferação de uma doença sob determinados grupos.
As implicações do racismo e injustiça ambiental são observáveis não apenas quando barragens se rompem ou resíduos tóxicos são diluídos em rios, mas também quando, por exemplo, periferias e favelas se caracterizam pelo menor acesso a serviços de saúde, energia-elétrica, água potável. Não tem garantido, sequer, o uso regular do álcool em gel 70% para a higienização das mãos contra o vírus causador do Covid-19. Ou ainda pelas precárias condições de moradia e baixa ventilação, que muitas vezes obrigam famílias inteiras a viverem em poucos cômodos, contribuindo para a aglomeração, sem condições de praticar o distanciamento físico.
Em um país com passado escravista como o Brasil, onde esse sistema imoral durou quase 400 anos, o Estado segue, junto às suas elites, sendo habilidoso em perpetuar as desigualdades que inevitavelmente contribuem para matar e expor segmentos da população. O racismo em suas várias dimensões, incluindo a ambiental, tem sido um dos seus instrumentos mais bem sucedidos para essa empreitada. Não por acaso, a primeira vítima da epidemia de Covid-19 no país foi uma empregada doméstica negra de 63 anos. Ou ainda que a população negra seja a mais afetada pela doença. Essa parcela da sociedade lidera também o índice de desempregados, dos mais afetados por insegurança alimentar e constituem os que têm menos acesso a serviços básicos de saúde ou a recursos naturais, como água potável.
Por fim, a nossa crise não é apenas ambiental e sanitária, ela é civilizacional. Reformas profundas precisam começar a ser postas em práticas. Desde a forma como temos nos relacionado com o meio biofísico e com ele seguimos coevoluindo, mas também no modo como a sociedade vem enfrentando problemas sociais: o racismo, as desigualdades econômicas e sociais. Por isso, cabe ressaltar que não há saída individual para a crise atual, tanto em nível de governo quanto em outras camadas da sociedade. Quaisquer que sejam as soluções tecnológicas – mesmo as vacinas, que no contexto atual se apresentam como imunizantes indispensáveis –, sem modificações nas condições de vida dos pobres, estes seguirão pagando um maior preço pela epidemia ainda em curso e por outras que – como tem alertado a OMS diante das mudanças ambientais, estão por irromper.
A inclusão do racismo ambiental na agenda pública do estado será determinante na retrospecção sobre os efeitos da pandemia de covid-19, bem como no enfrentamento de epidemias futuras, constituindo-se como categoria de entendimento fundamental para garantia da sobrevivência de grupos sociais cujas vidas, entre epidemias passadas, contemporâneas e futuras, seguem sendo exterminadas.
Assista ao vídeo do historiador Ramon Feliphe Souza no Cultne TV sobre este artigo:
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental:
(EF03HI01) Identificar os grupos populacionais que formam a cidade, o município e a região, as relações estabelecidas entre eles e os eventos que marcam a formação da cidade, como fenômenos migratórios (vida rural/vida urbana), desmatamentos, estabelecimento de grandes empresas etc. (EF04HI02) Identificar mudanças e permanências ao longo do tempo, discutindo os sentidos dos grandes marcos da história da humanidade (nomadismo, desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, criação da indústria etc.).(EF09HI07) Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes.(EF09HI23) Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo.
Ensino Médio:
(EM13CHS102) Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais da emergência de matrizes conceituais hegemônicas (etnocentrismo, evolução, modernidade etc.), comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos.(EM13CHS204) Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas.(EM13CHS601) Relacionar as demandas políticas, sociais e culturais de indígenas e afrodescendentes no Brasil contemporâneo aos processos históricos das Américas e ao contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual.
Ramon Feliphe Souza
Doutorando em História da Saúde e das Ciências (FIOCRUZ)
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