Rael: “A minha autoestima me defende”

Um dos artífices de uma original fusão entre rap e reggae conta como a música serviu para a afirmação de sua identidade e a de outros jovens da periferia

Por Pedro Alexandre Sanches

Ribombam as batidas estilizadas de um coração. É um rap. “Ainda bem que vou na direção que apontam as batidas do meu coração”, golpeia em consoantes o rapper de voz mestiça, suingada. É um rap com melodia. “E você, tem ouvido seu coração ultimamente? Procure saber”, termina o rapper, dirigindo-se provavelmente mais a seus pares rappers que a mim ou a você.

Filho de branco pernambucano interiorano de olhos verdes, de Bom Conselho (que lindo nome), com negra (“negra de verdade”) mineira interiorana de Caxambu, o rapper nascido paulistano no bairro periférico sul do Jardim Iporanga tem nome de rei: Israel dos Reis.

Era para ser Feliciano, como o pastor que faz furdúncio como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal. “Na real, o sobrenome é por parte do meu pai. Na hora de me registrar, bateu o machista, registrou só o sobrenome dele. Minha mãe é dos Reis, seria Rael dos Reis Feliciano. Ficou só Feliciano”, conta Israel, que de menino virou Rael e de rapper transformou-se em Rael da Rima.

As batidas do coração abrem seu segundo álbum solo (ele também tem três CDs como uma das cinco pontas do sensacional quintetorapper Pentágono). Ainda bem que eu segui as batidas do meu coração foi lançado independente pelo selo Laboratório Fantasma, do colega Emicida, parte norte da conexão paulistana zona sul-zona norte, na qual Rael e o amigo Criolo (de quem é amigo desde os 14 anos) representam a seta sul. Se no balançadíssimo MP3 – Música Popular do 3o Mundo (2010) Rael era Rael da Rima, agora ele virou Rael, só.

“Há vários moleques rimando mais do que eu aí, fica muito pretensioso Rael da Rima”, ele explica, com simplicidade, a mudança de nome artístico. “Em ocasiões como esta de entrevista, os caras pediam pra eu fazer um freestyle, e eu não faço. Eu apresentava a batalha da Rinha dos MCs com o Criolo, mas meu forte nunca foi fazer freestyle”, afirma, modesto, o rimador hoje com 30 anos.
Estamos na sede do Laboratório Fantasma, no centro fervilhante de Santana, bairro quase central da zona norte, que Rael trata quase como centro, agora que não mora mais a pelo menos duas horas de distância de qualquer compromisso, como acontecia nos 27 anos vividos no Jardim Iporanga. Dessa experiência, surgem letras como as de “Trabalhador”, do primeiro disco, e “Diferenças”, do novo.

“É você ver os boy falar procê que acordou às três da tarde porque foi no rolê/ que gastou mais de mil conto pra fumar e beber/ que eu devia ter colado e que mosquei de perder/ eu chego sempre cansado, ele todo empolgado/ eu meio estressado, ele muito engraçado/ na corrida da vida ele já vai disparado/ e eu tô lá atrasado, com os braços atados”, diz na fortíssima “Diferenças”. “Trabalha, trabalha, trabalha, nego/ vou dormir tarde e acordar bem cedo/ […] sem tempo para o amor, só pra trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar, trabalhar…/ […] cadê o dinheiro?/ cadê o amor?/ no final você fica sem os dois”, dá o papo reto em “Trabalhador”.

(Antes que nos esqueçamos de vez de Marco Feliciano, eis o que pensa sobre o tema Rael, que é filho de católica e não religioso e gosta de falar de candomblé em suas letras: “Não tenho preconceito contra religião nem contra pastor, mas pastor costuma ser um cara meio reaça. Como é que o cara vai me falar que a África foi amaldiçoada por um demônio? Como seria o nome desse fenômeno, então? Europa? O cara não estudou, não, véio?”)

Talvez Rael não seja rápido o suficiente para o freestyle – a embolada dos meninos paulistas de periferia, filhos dos repentistas nordestinos que ele homenageia rapidamente na embolada “Tinha que parar” (2010). Mas bom de verso e de rima ele é, e muito. Na corrida da vida, ele já vai disparado. Desde o Pentágono (cujo primeiro álbum saiu em 2004), Rael tem sido artífice de uma original fusão entre rap norte-americano/brasileiro e reggae jamaicano/europeu. Os cabelos cultivados em estilo rastafári não deixam dúvida, embora talvez custem a Rael alguns esculachos policiais a mais. O rap entra com as batidas, o reggae contribui com a melodia, e o som mestiço ecoa e hip-hopeia Bob Marley, filho de negra jamaicana com branco europeu.

“A juventude negra agora tem voz ativa”

RAEL

Cansado das duas horas diárias do Jardim Iporanga a qualquer lugar que precisasse ir, Rael a certa altura optou pela motocicleta. “Eu andava todo errado, não tinha habilitação. Sofri um acidente e tive sorte, porque o policial foi com a minha cara, passou um pano no boletim, e eu consegui ter meus direitos do acidente. O cara que me atropelou imprensou a moto na calçada e saiu fora. Achei ele porque a placa do carro ficou na moto. Morava em Higienópolis, era um juiz”, conta. Dessa vez, a negritude do motoboy venceu a brancura do juiz. “Antigamente só tomava preju, os caras faziam murchar pneu, essas humilhações que não precisa. Hoje ando todo certo e não tomo mais enquadro”, ri.

Demoramos para usar o termo “racismo”, embora ele esteja nos rondando o tempo todo. “Hoje em dia me defendo desse bagulho com a música. Hoje tenho mais autoestima, a música me deu esse poder. A minha autoestima me defende”, afirma.

“A juventude negra agora tem voz ativa”, determina a letra da nova “Causa e efeito”. Quem fala, a esta altura, é um jovem já cheio de responsabilidades, pai de Martin, de 1 ano, seu primeiro filho com (a branca) Marina Feliciano, entusiasta e assessora de imprensa do Laboratório Fantasma. Martin evidentemente vem de Martin Luther King, mas Rael diz que não deseja o peso do nome para o filho: “Nem quero que ele carregue esse peso, de ser o Martinzão. Se ele quiser ser, que seja, vou dar todo apoio.”

É um percurso que corta gerações. Os pais de Rael (e de seu irmão mais velho e influenciador Daniel) não puderam muito estudar. “Eles falam isso, que não foram ‘bem letrados’.” Daniel e Rael chegaram até o terceiro ano do colegial. O pai tocava em trios de forró em Pernambuco, mas não pôde seguir adiante – virou pedreiro de profissão. “Quando comecei a fazer rap, meu pai dizia: ‘Isso não é música, não!’. Depois que comecei a tocar um violão e a misturar, ele disse: ‘Agora está começando a ficar melhor’”, ri Rael.

A mãe foi empregada doméstica, e o tema nos leva à PEC das empregadas (devemos perdoar o nome machista, no feminino, da lei?). Rael sabe o que pensa do assunto: “As madames vão deixar de ser madames, essa é a questão. Não vão conseguir pagar. É madame porque tá fácil pra ela. Vou ser sincero, se não for a empregada, ela não tem vida. Na real, a casa não é dela. Quem cuida da casa é a empregada. Ainda não caiu a ficha da importância, da diferença que a empregada faz na vida pessoal dela. Não é só o funcionário braçal”, afirma. Rael pode não ser rápido para o freestyle, mas volta e meia declama poesia em prosa, sem rima, de realidade, veloz.

“Cantar, tirar a dor, me aliviou/ mas já senti rancor, tive medo/ mas tem que ter amor na sua vida/ e seja qual for a ferida/ tudo vai passar”, canta “Tudo vai passar”, melódica entre os golpes das consoantes na rima. A faixa retrabalha o tema de “Lembranças” (“a gente demora a vida inteira pra aprender/ parece que foi ontem”), de 2008, dos tempos do Pentágono. Todo mundo sente rancor, mas é preciso ser Rael – real – pra colocá-lo em ritmo & poesia. É poesia de realidade, plena de amor & rancor, ilusão & vida real: “O amor, a dor, a vida vai/ tudo vai passar.”

Para cá dos tempos e temas do rancor, ele acalenta com carinho a descoberta dos Racionais MC’s, no início dos anos 1990 (quando tinha pouco mais de 10 anos de idade). “Antigamente tinha muito esse negócio de tribo. Quem curtia rock era só rock, e eu era um moleque de periferia que foi abraçado pelo rap. Na escola, rolavam essas coisas – pra mim nunca foibullying, era tiração. ‘Ah, no cabelo dele não entra água’”, principia.

“Racionais foram um antídoto que serviu de autoestima pra muitas pessoas que não tinham autoestima. Alguém ficava com piadinha, você não tinha o que falar. Racionais foram uma afirmação de identidade que a gente não tinha. E funcionou. Depois a gente não baixava mais a cabeça pra ninguém, e isso foi bem legal. Pra mim, me ajudou como pessoa, até. Eu era um cara muito tímido, ficava reprimido. Depois disso, comecei a me mostrar mais, a ter mais atitude.”

Muitas de suas músicas se comunicam com essa herança transmitida de pai-racional para filho-rael. “Eles não tão nem aí/ eles não te dão valor/ eles querem destruir/ a magia dessa cor”, canta no reggae “Eles não tão nem aí” (2010), em que critica a negligência dos “grandes” (e brancos) industriais diante das questões do dia a dia.

“Sou um negro, não me julgo como coitado, mas tenho total consciência de que estou à margem das coisas. Morando aqui no centro, agora eu vejo isso. No meu prédio sou o único preto”, descreve, degraus acima do ponto de partida dos Racionais, e ao mesmo tempo à vontade entre os reggaes, sambas, baladas soul, funks e manguebits que se permite introduzir no hip-hop à moda de Rael.

“Antigamente não chegava dinheiro pra gente, de nenhum jeito. Meus pais sempre trabalharam e nunca conseguiram comprar nada”, observa, ciente do muito que ainda há para caminhar, mas também dos ventos de mudança que já fazem tremer alguns dos alicerces do fantasmagórico edifício casa-grande-e-senzala. “Não deixo quieto. Não sou um cara que está colocando a bandeira branca ou fingindo que não existe a diferença.”

O papo também é reto na nova “Diáspora”, em que se cruzam ancestralidades africanas, indígenas, europeias etc.: “Só observar pra tu ver que tamos por todo lado/ eles podem não gostar da minha cor, mas gostam do meu suingado/ tem aqui, tem ali, Piauí, Malawi, Meriti, Japeri, Caxambu, Pacaembu, Grajaú, Guarujá, Joinville, Ceará, Acari, Itaquera/ vai ver que nós que tá.”

Mais forte que qualquer outra é a recém-lançada “Só não posso”, uma belíssima canção de realidade sobre drogas. Primeiro, o rap introduz o caso de um sujeito que confundiu o narrador com um traficante, por causa dos dreadlocks no cabelo. “Se você curte um som, te vendo um CDzim”, o narrador retruca. “O do verde não era o que ele tava procurando/ era noia em BH e ficava mendigando/ mentiroso pra caralho e pra usar tá roubando”, critica em seguida, antes de cair numa real avessa a sermões ou condenações: “Criticar nem posso alguém nesse estado/ fico pensando só se eu tivesse deixado/ […] já pensou, irmão, então, se eu tivesse abraçado?”. O refrão-conclusão é mais uma aula de poética de realidade: “Eu só não posso me deixar levar, não/ eu tenho que rimar, remar, me controlar/ se o mar me levar/ onde é que eu vou parar?”

Rael lembra com prazer que, ainda moleque, seu grupo levou uma fita demo para apreciação de KL Jay, dos Racionais. “Ele falou: ‘Essa música aí que vocês falam que é mais rápido que um foguete não vira, não. Mas aquela ali vira.’ Era uma em que a gente falava de amor.

A gente entendeu que tinha de escrever coisas mais sólidas, reais, sem ficar viajando muito”, lembra.
Os Racionais sobrevoam a conversa quando Rael fala sobre a conquista passo a passo da autoconfiança. “Me prendo nesses valores que o negro tem. Quando vem alguém, fico de cabeça erguida, na real não te devo nada, é você que deve pra mim, cara. Minha filosofia pra lidar com isso é essa, e nas letras também. Acho que tento retribuir o que os Racionais fizeram pra mim. A gente agora tem voz ativa, sim, e tem de arrumar o jeito de conquistar nosso espaço dentro da sociedade.”

Há ideologia na proposição, mas ninguém há de subestimar o fato de que Rael agradece e retribui aos Racionais ao batizar seu disco de Ainda bem que eu segui as batidas do meu coração e ao inserir, em meio às ideologias e aos protestos, baladas soul de amor à la Tim Maia (a linda “Semana”, por exemplo). É como se ele se lembrasse até hoje que um dia o “durão” KL Jay recomendou que seguisse as batidas do coração. Eis aí que o novo disco comece ribombando as batidas do “coração companheiro/ coração maloqueiro/ coração mensageiro” de Rael da Rima dos Reis Feliciano. E você, tem ouvido as batidas do seu ultimamente?

 

 

Fonte: Revista Fórum

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