Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, geógrafo: “A geografia da escola não reflete a realidade”

Baiano Rafael Sanzio Araújo dos Santos participou de roda de conversa no Museu do Amanhã, no Rio, sobre territorialidade e resistência afro-brasileira

POR LUÍS GUILHERME JULIÃO, do O Globo

“O pensamento de que os quilombos são parte apenas do Brasil imperial ou colonial tem que ser desmistificado. O quilombo é passado, mas sobretudo presente”, diz o geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Anjos. – Fernando Lemos / Agência O Globo

“Tenho 56 anos e nasci em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo da Bahia, onde cresci em contato com referências africanas. Na faculdade, comecei a questionar a geografia que me era ensinada . Hoje sou professor titular da Universidade de Brasília e responsável pelo projeto Geografia Afro-brasileira”

Conte algo que não sei.

Nossa cultura de espaço é parca e num país continental como o Brasil isso merece atenção especial. Há uma distância entre a geografia francesa e outras importadas que aprendemos na escola e a geografia real brasileira, que é invisibilizada, minorizada. E isso é ruim tanto para nossa cidadania quanto para as conexões dos nossos mapas mentais.

Por que é importante dar mais atenção à geografia?

Temos mapas mentais que ativam conexões e nos permitem circular, mudar caminhos e evitar vícios. Isso começa numa escala micro, dentro de casa. Usar sempre o GPS ou sentar todo dia no mesmo lugar na escola ou trabalho é vicioso. Quando mudamos, criamos outros planos e pontos de vista para o cérebro e isso é bom para estimular essas conexões.

A geografia é desvalorizada?

Nossa cartografia oficial é da década de 60 e 70. Tem uma parte da amazônia que começou a ser mapeada só nos últimos três anos. Isso mostra o quanto estamos defasados. A geografia já foi mais evoluída na Colônia e no Império e vem decaindo na República. Antes, o IBGE era uma autarquia e produzia estudos geográficos, e não apenas dados.

Por que a geografia da escola não reflete nossa realidade?

O Brasil é o que é, do ponto de vista da estrutura político-territorial, em função de resistências, conflitos e apropriações territoriais da matrizes europeia, africana e indígena. O preconceito com a fauna e a flora dos trópicos e os medos da malária e da febre amarela, fazem parte de uma hostilização maior em relação aos habitantes dos trópicos. Isso tudo é geográfico e não nos é ensinado devidamente. Então fica difícil respeitar nosso ambiente e composição. Se não valorizamos todos, ficamos sempre com uma pendência de compreensão.

E esse ensinamento vem decaindo?

O Brasil produz pouquíssimos estudos geográficos senão na academia. O bairro em que nascemos, o fluxo na rua, as plantações, desmatamento, isso tudo é dinâmico. E essa dinamicidade requer pesquisa, monitoramento. O país faz pouco disso. Na escola, a geografia perdeu muito com a introdução dos estudos sociais, que juntaram a área com a história. O pensamento de que os quilombos são parte apenas do Brasil imperial ou colonial tem que ser desmistificado. O quilombo é passado, mas sobretudo presente.

Por que os quilombos não são passado?

Muitos quilombos continuaram rurais e as periferias de grandes metrópoles como Rio, Salvador, Recife e São Paulo eram permeadas por eles. As cidades cresceram, se espalharam e abraçaram essas localidades. Os quilombos estão presentes nas cidades brasileiras, são contemporâneos, e o urbanismo não considera isso. O Cais do Valongo, por exemplo, maior porto escravista da América, faz parte de um Brasil invisível e pouco se ensina sobre ele.

Qual o lugar do negro no território brasileiro?

Na exclusão, na invisibilidade. Quem mora na favela e quem mora na Zona Sul? Isso não sou eu que estou dizendo, é o que o espaço revela. Isso não só não se traduz na geografia como a questão dos quilombos tem que ser tratada com mais seriedade. Eles precisam ser vistos como componentes reais da estrutura social brasileira. Portanto, merecem mais respeito e a resolução de suas demandas.

 

+ sobre o tema

Violência contra jovens negros em pauta

Por:  Beatriz Noronha -    O Brasil ocupa...

Naturalizado russo, goleiro brasileiro é alvo de ofensas racistas em Moscou

O goleiro Guilherme Marinato, 31, foi alvo de ofensas...

Reflexão sobre o racismo

Depois da grande mobilização do #somostodosmaju o que mudou,...

A crise, a direita, o futebol e o racismo

por Daniel Eduardo MafraSe a História se repete, sendo...

para lembrar

spot_imgspot_img

A COP29 fracassou no país com a paisagem de poços de petróleo

Ufa! Agora posso dizer que tive a sensação de que não íamos avançar no Azerbaijão. Talvez essa percepção tenha me atravessado de forma objetiva...

Quem tem medo de ser negro?

Às vésperas do último dia 20 de novembro, quando se comemora a Consciência Negra no Brasil, o Datafolha divulgou uma pesquisa sobre racismo e percepção racial da população...

As heranças da escravidão ainda sustentam as elites políticas do Brasil

É muito comum ouvir de brasileiros em visita a igrejas, castelos e palácios da Europa que aquela riqueza foi resultado da exploração dos recursos...
-+=