Marcha movimentou pelo menos dez estados e teve repercussão em 15 países
Jorge Américo e José Francisco Neto,
De São Paulo
Era um final de tarde de sexta-feira, 22 de agosto, temperatura agradável e ar razoavelmente fresco. Os meios de comunicação anunciavam discretamente as dificuldades enfrentadas pelos motoristas que tentavam trafegar por pontos movimentados das principais capitais do país. Mas pouco se falou que o incômodo gerado por mais de 50 mil pessoas significava a retomada da articulação do movimento negro em âmbito nacional.
A 2ª Marcha Nacional contra o Genocídio do Povo Negro movimentou pelo menos dez estados e teve repercussão em 15 países. O protesto teve seu ponto forte em cidades como Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Vitória, Belo Horizonte, Porto Alegre e Manaus, com passeatas que alteraram a rotina dessas regiões.
Em São Paulo, cerca de 3 mil pessoas compareceram ao vão do Museu de Artes de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, para participar da manifestação.
Douglas Belchior, professor de história e integrante da UNEafro Brasil, avalia que a marcha foi um momento histórico para o movimento negro no país. Ele lembra que a iniciativa surgiu da Campanha Reaja Ou Será Morto, organizada pelo coletivo Quilombo X, da Bahia.
“A gente precisa continuar nesse clima de rearticulação dos grupos do movimento negro e a grande tarefa é pautar o Estado. Fazer com que o Estado reconheça na prática o genocídio e dê respostas a esses problemas que é um dos maiores que a gente vive no país hoje, que é o genocídio do povo negro”, explica.
Genocídio feminino
Em São Paulo, a Marcha percorreu as principais vias da região central e teve encerramento aos pés do Teatro Municipal. O prédio histórico foi rebatizado pelos movimentos e desde então passou a ser chamado simbolicamente de Cláudia Silva Ferreira, trabalhadora que teve o corpo arrastado por um carro da Polícia Militar no Rio de Janeiro, depois de ser baleada em um tiroteio.
O genocídio da população negra, na maioria das vezes, é lembrado pelo extermínio da juventude nas periferias, muitas vezes cometido por policiais militares. Mas a história de Claudia também está inserida nesse contexto, como avaliam mulheres integrantes de organizações do movimento negro.
“Quando a gente olha, por exemplo, para o índice da saúde pública, há um índice de mortes maior entre as mulheres negras. Uma mulher negra tem muito menos atendimento durante a gravidez, por exemplo, quando ela vai fazer o tratamento pré-natal, do que uma mulher branca”, lembra Beatriz Lourenço do Nascimento, integrante do movimento Levante Popular da Juventude.
A interpretação de Katiara Oliveira, integrante do movimento Kilombagem, vai na mesma direção . “O genocídio que atinge a mulher negra, no físico mesmo, está no racismo institucional na Saúde, onde a gente verificou já há alguns anos que a mulher negra morre sete vezes mais no parto do que as mulheres brancas”, afirma.
Pesquisa recentemente publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que de 46,3% das mulheres negras de 25 anos ou mais nunca fizeram exames de mama na vida, contra 28,7% entre as brancas.
O genocídio em números
O Mapa da Violência 2014, divulgado no mês passado, mostra que uma verdadeira carnificina ceifa a vida de milhares de pessoas. As vítimas têm em comum a cor da pele, faixa etária e classe social.
Em 2012, 54,5% das vítimas de homicídio tinham entre 15 e 29 anos. Outro dado aponta que em dez anos, de 2002 a 2012 – período analisado pelo estudo –, a taxa de mortes entre brancos caiu 24,8% (de 19.846 para 14.928). Já entre os negros, neste mesmo período, cresceu 38,7% (de 29.656 para 41.127).
O Mapa da Violência detalha que, em 2002, enquanto os homicídios entre os brancos eram de 21,7 por 100 mil brancos, a dos negros era de 37,5 por 100 mil negros. Morreram, portanto, 73% mais negros do que brancos.
O estudo conclui que neste período de dez anos não houve alteração no que se refere a políticas públicas para resolver esse problema, e chama a atenção para uma “crescente seletividade social dos que vão ser assassinados”.
Mortos pela PM
O índice de homicídios analisado pelo Mapa da Violência, no entanto, não especifica as mortes que foram causadas por policiais militares. Os PMs assassinaram, no período entre 1995 e abril deste ano, 10.152 pessoas, segundo o levantamento feito pelo portal Ponte.org.
Nesses 19 anos, foram 8.277 mortes provocadas por PMs durante o trabalho de policiamento e outros 1.875 casos fora do serviço oficial – a maior parte em “bico” (serviç0o extra-corporação) de segurança particular ou em situações como brigas de trânsito, de bar, entre vizinhos, crimes passionais etc.
Um estudo feito pela Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) – “Desigualdade Racial e Segurança Pública em São Paulo” – que analisa as mortes cometidas por policiais entre 2009 e 2011, demonstra que a faixa etária e a cor de pele das vítimas não diferenciam da pesquisa feita pelo Mapa da Violência. O estudo apontou que as vítimas são predominantemente negras (61%), homens (97%) e jovens, entre 15 e 29 anos de idade.
Fonte: Brasil de Fato