Por Cidinha da Silva
Hermano, meu caro,
É impossível responder à sua pergunta de perplexidade face ao assassinato do jovem negro Douglas Rafael, o DG, um dos 200 negros assassinados a cada 100 mil há pelo menos duas décadas (menção feita por você quase num suspiro), como se todos nós fizéssemos parte de um coletivo harmônico e festeiro que quer o bem do Brasil. E já aviso que não se trata do papo simplista de cidade partida entre morro e asfalto, falamos de negros e brancos, mano Hermano. De racismo de Estado e da polícia em especial. Falamos de genocídio da juventude negra no Brasil! Você já ouviu falar disso?
Outro aviso importante, ninguém aqui é tolo de responsabilizar a “Família Esquenta” por esse estado de coisas, não se trata disso, seria leviano. Mas penso que haja respostas distintas para o que vocês, a “Família”, podem fazer dentro da rede Globo, pela juventude negra e favelada e o que nós, que não vivemos no mundo de faz-de-conta do PROJAC podemos fazer (e fazemos). O que está sendo feito por quem legitima o direito de assassinar negros não é segredo. Deixemos de ser brancos ou color blind e sejamos francos.
O que a sociedade civil organizada tem feito quanto ao genocídio da juventude negra? Tem denunciado o genocídio, há décadas. Tem instado pesquisadores a produzir dados sobre esse tema, também há décadas. É por isso, por essa denúncia, pela escuta às organizações do Movimento Negro (a “Família Esquenta” sabe que existem organizações políticas negras no Brasil?) é que pesquisadoras seríssimas como Silvia Ramos, dão a necessária atenção à variável racial na análise da violência que prende, mata, e obsta a vida plena do setor sobrevivente desta juventude.
Aliás, tenho a triste certeza de que certas informações são ouvidas e creditadas porque são ditas pelos aliados brancos. Se forem produzidas pelos negros serão sempre minimizadas. A escuta ao Átila Roque é apenas uma exceção que confirma a regra.
Tem uma moçada na Bahia que vocês precisavam conhecer, ouvir, um movimento que se chama “Reaja ou será morto! Reaja ou será morta.” São assim, eles! Diretos. Contundentes. Sem pulinhos de alegria dentro do PROJAC, por estar no PROJAC. Sem pílula de faz-de-conta. São reflexo da chapa quente do mundo real que ferve do lado de cá.
Para esse mundo não existe a novidade da guerra, como não existiu para o “famoso” DG, nem para o anônimo Edilson Silva dos Santos, morto no mesmo dia, no mesmo Pavão-Pavãozinho. Em essência, trata-se de dois jovens negros expostos ao genocídio da juventude preta, mais nada.
Nós contamos nossos mortos há tempos quase imemoriais, Hermano. São inúmeros os DGs do nosso convívio. Sabe, Hermano, em São Paulo, para a gente ter uma ideia aproximada do número de mortos na onda de assassinatos de jovens negros em 2012/2013, a gente conversava com o pessoal dos cemitérios de bairro. Sabe por quê? Porque a imprensa noticiava que haviam morrido cinco ou seis jovens numa determinada noite, mas quem era da quebrada contava muitos mais caixões. O número de velórios, de famílias desesperadas era muito maior. Então descobrimos que é seguro multiplicar por cinco, o número de mortos noticiado, assim nos aproximamos da cifra total de cada noite. Foi o que os coveiros nos ensinaram.
Não creio que esteja contando qualquer novidade à “Família Esquenta”, mas, o que vocês fazem é camuflar esses números, essa realidade, por meio de uma frágil fruição humana de pessoas negras moradoras de favela, felizes por aparecerem na tevê, de maneira supostamente valorizada, por fazerem parte do mundo do entretenimento. Sim!!! As pessoas negras querem leveza, diversão, alegria, remuneração por sua arte, como a que recebia o dançarino DG, roubado em 800 reais depois de assassinado e sabe-se lá em quanto foi extorquido quando vivo. Porque as coisas são assim na racializada sociedade brasileira, não é? O negrinho que ascende e continua no morro, se não é executado pelo tráfico, por recusar-se ao aliciamento, paga pedágio à polícia. O problema é a crença de que essa solução individual ou endereçada a pequenos grupos de negros artistas (por mais que a “Família Esquenta” empregue e remunere dignamente) responde ao problema racial no Brasil. E se vocês acham que nós estamos enganados e que a “Família Esquenta” nem vê esse problema, não trata disso, estamos certos.
Na real, a proposta de programa feita por vocês é um sossega-leão para o problema racial que o Brasil vive e nega, cuja explicitação acontece quando algum negro fantástico, talentosíssimo, excelente profissional, com o qual convivemos, é assassinado por ser negro (ser preto “da Globo” não livra a cara de ninguém), como o são os outros 199 jovens negros mortos a cada 100 mil.
A “Família Esquenta” por meio de seu sociologuês da diversidade, forma pseudo-intelectualizada de coroar a “mistura” defendida com princípio do programa “Esquenta” e apresentada de forma simbólica como solução social harmoniosa para o Brasil, contribui para perpetuar a ideia de miscigenação subordinada. Ocorre que a tal “mistura” (batismo contemporâneo da miscigenação) até hoje não conseguiu provar sua efetividade para os pretos, tampouco diminuiu os privilégios dos brancos. E essa é a centralidade do tema. É disso que falamos.
Acredito, Hermano, nas intenções boas e sinceras da “Família Esquenta”, mas o que vocês fazem (e talvez só consigam fazer mesmo isso) dentro dos limites de uma rede de tevê extremamente reacionária e comprometida com o stablisment, com a manutenção de privilégios para os que sempre mandaram e sempre detiveram poderio econômico e político, não altera a questão de fundo, não mexe com ela. E que questão é essa? O racismo estrutural que justifica a perda da vida de jovens negros como se eles fossem pulgas, ratos ou baratas. O racismo institucional que executa esse pressuposto por meio da polícia, o braço armado do Estado.
Imagino que a “Família Esquenta” esteja sob forte emoção, comoção, mas os termos da mensagem da Regina Casé, os seus termos, Hermano, são muito brandos para tratar uma situação que é de absoluta barbárie. Não existe nada mais perigoso no Brasil do que ser um jovem negro! Em torno de 70% dos homens mortos por homicídio no país são negros, mais da metade, jovens (dados de 2011).
Existem também algumas ações e políticas governamentais em curso, no sentido de resguardar a vida da juventude negra, mas não é minha proposta neste texto discuti-las. Prefiro me ater ao poderoso instrumento de intervenção que pode representar a “Família Esquenta” e à escuta qualificada que ela precisa fazer das organizações políticas negras, das pesquisadoras e pesquisadores negros, para além da proposição inócua de um grande pacto social pela vida, que não discuta profunda e amplamente o sentido e o significado das vidas que o racismo descarta como nada.
Fotos de DG, jovem assassinado pela polícia no morro Pavão Pavãozinho. Rio de Janeiro, 24 de abril de 2014.