Revolta dos Búzios, feriado na Bahia?

Projeto é mais um a trazer à tona a chamada Conjuração Baiana, episódio simbólico na luta pela participação popular na política
por Manuca Ferreira, da Carta Capital 

De Salvador

Oito de novembro de 1799. Naquela tarde, quatro homens das camadas mais populares da cidade de Salvador foram esquartejados. Seus crimes? Haviam liderado, junto a outras pessoas, a Revolta dos Búzios – também chamada de Revolta dos Alfaiates e Conjuração Baiana. Eram dois soldados – Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas de Amorim Torres –, um aprendiz de alfaiate, Manuel Faustino dos Santos Lira, e um mestre alfaiate, João de Deus do Nascimento.

Todos eles; pardos, negros e filhos ou netos de escravos. Assim, aquela data entrava na história. Cerca de um ano antes, em 12 de agosto de 1798, a capital baiana havia amanhecido com diversos manuscritos espalhados em prédios públicos, conclamando a população para uma revolta armada que, entre outros temas, defendia a proclamação da República e o fim da escravidão.

Escreveram esses homens em 1798, entre outras coisas: “Animai-vos, povo bahiense, que está para chegar o tempo feliz da liberdade. O tempo em que todos seremos irmãos. O tempo em que todos seremos iguais”.

Em 2011, o feito dos quatro foi reconhecido pelo governo federal e seus nomes entraram para o Livro dos Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade, em Brasília. Agora, após aproximadamente 217 anos daquele novembro de 1799, os personagens da Revolta dos Búzios podem se tornar mais conhecidos.

Em fevereiro, a deputada estadual Fabíola Mansur (PSB) propôs na Assembleia Legislativa da Bahia que o 8 de novembro se torne feriado estadual. O projeto está em tramitação naquela casa parlamentar e, no presente momento, está sob apreciação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Em entrevista à CartaCapital, a deputada socialista disse que a proposta foi bem recebida pelos colegas e deve ser aprovada.

“[…] A tendência (é) de que eles (os deputados) abracem a ideia, até por ser um tema que tem expressão no conjunto da sociedade baiana”, disse. “A Casa tem, nos últimos anos, trazido para si a responsabilidade da reconstrução histórica do povo baiano, por isso acreditamos poder contar com o apoio dos colegas para ver aprovada esta proposta”, declarou.

A proposta de transformar a data do enforcamento de parte dos líderes da Revolta dos Búzios dialoga, de acordo com a parlamentar, com a decisão da Assembleia Geral da ONU de proclamar o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes.

Sucede ainda outros acontecimentos em memória à data que vem sendo implementados, como a inclusão no Livro dos Heróis da Pátria e o hasteamento da bandeira da Conjuração Baiana pelo governo da Bahia em dezembro passado, na Praça da Piedade, em Salvador, local onde eles foram executados.

O debate sobre a Revolta dos Búzios é intrigante pois simboliza as complexidades daquele período, algumas das quais ecoam até os dias atuais.

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Cerimônia de hasteamento da bandeira Símbolo da Revolta dos Búzios, na Praça da Piedade, em Salvador, em dezembro de 2015 (Foto: Manu Dias / GovBA)

Além das várias pessoas dos setores médio e baixo da sociedade, a Revolta dos Búzios contou com a participação de homens poderosos da então Capitania da Bahia. A historiadora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Patrícia Valim, autora de uma tese de doutorado sobre a Conjuração, defendida em 2013 na Universidade de São Paulo, lembra que esses homens apoiaram o movimento para defender os seus interesses, ameaçados por decisões da Coroa portuguesa. Eles recuaram, no entanto, após a divulgação dos manuscritos, que representavam uma radicalização.

“Ao primeiro sinal de radicalização dos setores médios e baixos do movimento, com a publicização dos boletins manuscritos em locais públicos da cidade, os poderosos envolvidos recuaram e passaram a cooperar nas investigações, condenando os milicianos”, diz Valim.

“Um dos episódios mais paradigmáticos dessa cooperação é o que um dos notáveis chamou de ‘pronta entrega de escravos’ à Justiça, no qual o secretário de Estado e Governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque, o terceiro homem mais rico da Capitania da Bahia e do Brasil, entregou alguns de seus escravos e de outros notáveis de seu grupo político aos desembargadores responsáveis pela investigação”, diz. “O objetivo era fazer com que os escravos os isentassem de qualquer suspeita de crime de sedição e condenasse os milicianos”, explica Valim.

Para Valim, isso torna mais complexa a análise da Revolta dos Búzios, pois o movimento abrigou interesses contraditórios, girando, no primeiro período da Revolta, entre 1796-1798, antes da divulgação dos manuscritos, em torno de um consenso que não ameaçava a escravidão.

Foi, também, um movimento com reflexo e participação de homens poderosos para além das fronteiras do Brasil, envolvendo funcionários régios em Portugal, Angola e em São Tomé e Príncipe, devendo ser compreendido, segundo ela, como um movimento político de dimensões imperiais, não restrito à Capitania.

A participação de poderosos, entretanto, não deve significar a diminuição da importância da atuação popular na Revolta. “Essas iniciativas [como o feriado] nos permitem refletir e discutir sobre o legado histórico da luta pela cidadania política, civil e social no Brasil, do exercício político das classes trabalhadoras, do legado de projetos de Nação, da escravidão, do escravismo e do genocídio da população negra”, afirma.

“Felizmente, hoje em dia ninguém é condenado à pena de morte por fazer política, mas ninguém há de negar que até hoje as classes trabalhadoras são diariamente criminalizadas por fazer política e tentar diminuir a imensa desigualdade social brasileira, assim como o genocídio da população negra”, diz.

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