Na transição do feudalismo ao capitalismo, a aristocracia começa a deteriorar seu poder em meio a fraqueza que representa o trabalho servil na terra, e estabelece uma forma de poder totalmente dependente da aliança com a burguesia, baseando-se no incentivo ao mercado colonial como elemento competidor fundamental para o poder da nação. Tal processo que se deu na França, Inglaterra, Portugal e Espanha, foi o princípio fundador do surgimento das colônias. A burguesia começa a enriquecer bastante e a estabelecer um círculo de domínio territorial e econômico que enfraquece a cada dia mais o poder local (nobreza) e o poder universal do papado, dividindo de forma concreta as nações com base na relação material da divisão de colônias e de centros de exploração.
A aristocracia passa a se desenvolver totalmente dependente do mercado criado e sustentado pela burguesia, sendo apenas uma financiadora cada vez mais desnecessária frente a alta acumulação que o mercantilismo é capaz de propiciar à burguesia: a troca de mercadoria humana na África pelas mercadorias de alto valor de troca da colônia para serem levadas à Europa geram lucros inestimáveis para qualquer cálculo que façamos hoje. A consequência não poderia ser outra: a burguesia torna-se mais poderosa do que a aristocracia, e o poder determinado nas mãos da última deixa de satisfazer o primeiro impulso de classe da burguesia, que a partir do meio do séc XVIII começa a se ampliar sua área de atuação e de lucro, e se ver limitada pelos acordos Absolutista.
Assim surgem todos os ideais do Iluminismo: como combate contundente à ideologia empregada pela aristocracia para justificar seu poder, como o Teocentrismo (e nesse sentido, poder justificado pela proximidade a Deus), o estamento social, os altos impostos de circulação de mercadorias…
Em diversos aspectos, a burguesia se situou como uma classe verdadeiramente revolucionária: o combate a esses elementos da existência da Aristocracia foram fundamentais para romper uma série de correntes de toda a humanidade – basta imaginar que uma família de servos jamais poderia deixar de ser servos ao meio ao Absolutismo; nenhuma forma de pensar a vida poderia se situar distante da compreensão de vida após a morte e sofrimento justificado e obrigatório durante a vida. Entretanto, pela dependência sobre suas básicas econômicas de dominação, a burguesia jamais pôde questionar outros elementos inquestionáveis para a liberdade plena do ser humano.
Para uma classe que aumenta e sustenta seu poder sobre a exploração colonial, e dentro disso o mercado de seres humanos, é impossível que se questionem todos os elementos que mantém justificável a escravidão, o servilismo e a existências de barreiras alfandegárias sobre as colônias, o que possibilitaria que se desenvolvessem economicamente independentemente de suas metrópoles.
No caso da França, onde ocorreu a Revolução burguesa (Francesa), podemos notar tal elemento de contradição com o fato de que, apesar de todo o discurso de liberdade pregado pela Revolução, que por um lado influenciou o fervilhar de idéias de liberdade humana, por outro lado acirrou o domínio sobre a colônia visto que a correspondência ao desejo de Revolução também em seu território, colocava sob risco o crescimento econômico francês e de grande parte da burguesia, a mercantil.
A escravidão, enquanto elemento lucrativo, jamais foi questionada fortemente pelo iluminismo.
Entretanto, esse fervilhar de ideias faz com que no Haiti toda a população que havia passado pela experiência da libertação americana (financiada pela França e composta por exércitos negros do Haiti) passe a questionar seu embargo econômico e a condição de sua população, e começa a reivindicar que seja ele também um país pertencente a nova onde de liberdade que vive a burguesia francesa e americana.
O Haiti, através de seu processo revolucionário, foi capaz de romper suas amarras, e passou por uma série de ataques vindos da sua ex metrópole contra seu sucesso: logo após sua independencia, a França invade a ilha e mata Toussaint de Louverture, principal líder da Revolução e governador da recém República. Dessalines reorganiza o exército e em 1803 derrotam os franceses. Desde então, o Haiti já sofreu, como castigo ao seu excesso libertário, um forte embargo econômico de 60 anos, uma multa de 150 milhões de francos de indenização aos franceses pela perca da colônia. Entre 1915 e 1934, o território foi ocupado pelos EUA, com a justificativa de proteger interesses americanos (bem parecidos com o propósito do norte da África…). Desde então o país passa por todo tipo de intervenções de Estados e exércitos, visando seu silêncio e seu controle para que não se vasasse pelo mundo a história de sucesso (que poderia ser) de uma colônia liberta pela luta, escravos libertos pelas próprias mãos.
Tal elemento foi fundamental para que todos os países que antes eram colônias francesas só avistassem sua libertação nacional em meio à crise capitalista que a burguesia passou na década de 60 do séc XX – onde a França conseguiu, com sucesso, passar quase dois séculos sem que nenhum domínio colonial fosse questionado.
Desde o surgimento do capitalismo e das ideias iluministas, a questão do povo negro ainda não foi resolvida. É preciso que questionemos, como nos faltou questionar no século XVII, XIX e XX, porque continuam existindo, e romper com a ideia de que se mantém por mera anacronia, e que faz parte de um elemento retrógrado na realidade mundial. Se fosse interessante para a burguesia romper com o racismo, teria o feito assim como rompeu com o teocentrismo e centralizou o poder sobre a matéria e sobre os que a possuíam. As defesas democráticas da burguesia estão ligadas diretamente de quanto dependem suas necessidades econômicas – se não é lucrativo libertar escravos, continuarão acorrentados; se não é lucrativo se abdicar da colônia haitiana, esta continuará servindo aos interesses mercantis da França revolucionária. Principalmente, se não é interessante economicamente deixar ao povo negro haitiano suas terras livres para sua autogestão, acionarão EUA, Comissão de Paz da ONU e manterão aprisionado o povo negro do Haiti, congelando o sucesso de sua vitória.
A abolição da escravidão entrou fortemente nesse jogo, pois combatida como excesso, jamais teve questionado seu elemento mais fundamental, pois ainda era preciso, e ainda o é, que a divisão pelo racismo em meio ao trabalho continue existindo. Basta que analisemos o trajeto histórico da transição da escravidão negra em todo mundo para o trabalho livre, onde contamos com países como EUA e África do Sul onde o racismo foi constitucional, e casos como o Brasil, onde a ideologia e as relações de trabalho cumpriram o mesmo processo.
O principal desafio do marxismo hoje é conseguir dar conta de reconstruir a direção que seguiu a burguesia, desde sua ascensão até o momento de crise estrutural que vive, notando que em todo esse processo, o racismo e o imperialismo sempre foram e sempre serão suas bases essenciais. Foi a razão pela qual, sem a menor organização consciente, conseguiu arrancar a aristocracia de todos os seus tronos. Foi a razão pela qual, por toda a existência do capitalismo, conseguiu superexplorar os trabalhadores brancos sob a ameaça de serem substituídos pelos miseráveis negros, que inflam dia a dia as filas de desemprego. Foi somente pelo racismo que a burguesia conseguiu justificar, sem Deuses ou outros mundos, sua superioridade enquanto raça e enquanto cultura, dominante sobre qualquer outra forma de vida não branca/européia. Enfim, é somente assim, pela situação de miséria justificada pelo racismo, que a burguesia consegue hoje superexplorar os territorios semi-colonizados da África, estabelecer as grandes Agroindustrias no Brasil e na África do Sul.
Temos um profundo desafio de programa. Há necessidade de construir uma estratégia consciente de combate ao racismo que compreenda que as tarefas do povo negro agregam tarefas anti-imperialistas e anti-capitalistas intrinsecamente, por origem e por situação real. Um negro que exija sua liberdade no Haiti hoje, deve saber que seu aprisionamento faz parte do aprisionamento de todo o povo negro por todo o mundo, faz parte da obstrução de um importante processo histórico de libertação nacional e racial. Um negro que exija sua liberdade nos EUA deve saber que ser consequente nesse sentido é desafiar-se a exigir a liberdade de seu povo que vive aprisionado sob os exércitos americanos no Haiti, no norte da África. O povo negro que no Brasil exige sua liberdade, deve saber que na África a burguesia brasileira explora os territórios de Moçambique e de Angola, e todos os outros que puder atingir para o agronegócio. O povo negro de todo o mundo que se ver como lutador contra o racismo, deve saber que a burguesia que condena sua vida é mundial, e se sai de seu território, deixa na sua mão negócios sujos e racistas, que se mantidos fazem de nós os ocupantes de todos esses tronos do racismo e do imperialismo. Ser consequente é saber:
a tarefa do povo negro é mundial. É contra a formação do capitalismo, contra sua manutenção, contra suas reformas cada vez mais precarizantes. É contra a ilusão do nacionalismo, do culturalismo, da luta por fora do combate a um outra classe, e assim, ao lado da classe certa a qual pertencemos: rumo à Revolução proletária. E na vanguarda, os negros e negras que à força deram e dão o sangue que mantém viva a carcaça desse mórbido capitalismo.
Fonte: Consciência Negra