Rosana Paulino: ‘Arte negra não é moda, não é onda. É o Brasil’

Foto- Roberto Moreyra : Agência O Globo

Com exposição em cartaz no Museu de Arte do Rio, a artista paulistana conta como busca combater séculos de preconceito com suas obras multifacetadas

Nelson Gobbi no O Globo

Foto- Roberto Moreyra : Agência O Globo

Artista com sólida formação acadêmica — é doutora em artes visuais pela USP — a paulistana Rosana Paulino despontou nos anos 1990 com uma das principais vozes a abordar questões raciais e de gênero. Sua obra é pouco vista por aqui, mas uma exposição recém-inaugurada no Museu de Arte do Rio (MAR) compensa com louvor a lacuna. “Rosana Paulino: a costura da memória”, retrospectiva com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery, chega à cidade após três meses em cartaz na Pinacoteca, em São Paulo. Maior exposição da sua carreira, a mostra reúne 140 obras produzidas em 25 anos, que abordam temas como memória, racismo institucional e a construção de narrativas pela ciência.

Muitas delas foram realizadas a partir de referências pessoais, como “Parede da memória”, composta de 1,5 mil patuás produzidos a partir de 11 retratos de família. Já séries como “Tecido social” (2010) e “Assentamento” (2013) evidenciam a imposição de uma relação social pretensamente harmoniosa nas costuras (ou suturas) entre tecidos, sem que se encaixem. Nesta entrevista, Rosana fala da conquista de feminismo e a normatização do preconceito: “É o que justifica um corpo negro levar 80 tiros e sociedade não fazer nada”.

Como a ciência surge em algumas de suas obras?

Para começar, eu cursei Artes Visuais na USP, mas cheguei a passar para Biologia na Unicamp. A mostra traz uma abordagem lúdica da ciência, na série “Tecelãs”, na qual os elementos da biologia aparecem em seres imaginários. E tem um olhar sobre a ciência e tecnologia como instrumentos de controle, em séries como “Assentamento” e “História natural?”

Por que, nestas últimas, usar imagens do século XIX?

Quero expor o “racismo científico”, teses de superioridade racial e pseudociências, como a craniometria, que animalizaram o corpo negro e tiraram sua dignidade, moldaram a sociedade brasileira. Elas levaram à ideia de trazer imigrantes europeus para embranquecer a população. É isso que justifica um corpo negro levar 80 tiros e sociedade não fazer absolutamente nada. Isso foi naturalizado.

Obra na exposição Obra na exposição A costura da memória, no MAR Foto- Roberto Moreyra : Agência O Globo

Como chegou aos resultados?

Foram cinco anos para encontrar a impressão ideal para os textos e as fotos do livro de “História natural?”. Usei uma impressora de tecido e uma prensa, tecnologias com séculos de diferença. Essa é uma história suja, borrada, não queria que as letras estivessem nítidas, certinhas. O Brasil e a América Latina foram um imenso laboratório, onde foram testadas todos os aspectos da colonização, depois aplicados na partilha da África.

Suas obras destacam outra camada deste debate: o papel da mulher negra na sociedade brasileira.

Sim. Obras como “Tecido social”, que não estava na Pinacoteca, associam através de imagens essa passagem da mulher escravizada para a empregada doméstica, das amas de leite para as babás. No começo da minha carreira, quando perguntavam se meu trabalho era feminista, eu respondia que era “feminino”. Só depois entendi que, na época, não conseguia me encontrar dentro da perspectiva do feminismo branco.

O feminismo negro abriu novas possibilidades?

A internet foi uma dádiva neste sentido, antes ninguém tinha interesse em discutir a respeito. Muita gente insiste que isso não é necessário, que pode dividir o movimento. Mas aí estamos falando de um feminismo para quem, para 10% das mulheres?

Pode dar um exemplo das diferentes demandas?

Uma reivindicação do feminismo clássico, o direito ao trabalho, nunca foi uma questão para a mulher negra. Nós trabalhamos desde sempre, é isso ou morrer de fome. Minha mãe foi empregada doméstica em Perdizes, no bairro da PUC de São Paulo, um dos berços do feminismo em São Paulo. Na época, muitas daquelas mulheres só puderam ser feministas porque tinha alguém limpando a sua casa, cuidando dos seus filhos.

Recentemente, a produção de artistas negros conquistou espaço em instituições e galerias. Como foi ver essa mudança?

Fiquei praticamente dez anos fazendo arte contemporânea sozinha, sem outros artistas negros, nos anos 1990. Existia um gap  de 20 anos sem que outras pessoas furassem essa bolha. Tinha o Emanoel Araújo, que poderia ser meu pai; o Abdias do Nascimento, que poderia ser meu avô. A Sônia Gomes estava em Minas , o Ayrson Heráclito, na Bahia; não tinham furado a bolha também. Era muito diferente de hoje.

E houve, de fato, uma conquista de espaço?

Sim, melhorou bastante, mas ainda estamos longe do ideal. É uma questão matemática: se 55% da população se define como não branca e uma exposição com 30 obras tem só duas de artistas negros, alguma coisa está errada. Durante muito tempo, as artes visuais viveram numa torre de marfim, de costas para o país e olhando para o Atlântico — o do Norte, não o Atlântico Negro. Mas não dá mais para negar essa produção, quem fizer isso vai ficar com seu acervo defasado.

O que levou a essa mudança?

Internamente, houve uma cobrança dos próprios artistas por este espaço. Mas também houve uma pressão externa, de instituições, curadores, universidades, que queriam ver esta produção. Havia uma hierarquização do conhecimento: passei minha vida acadêmica, da graduação ao doutorado, sem uma única aula de arte negra, indígena, latino-americana. Só que não dá mais para fingir que a sociedade não mudou.

Essa mudança chegou a ser considerada um ‘boom’ da arte negra. O que acha?

É mais uma narrativa criada para desvalorizar estes discursos que conquistaram espaço. Não é uma onda, não é “boom”, não é moda, isso é o Brasil. Se alguém ainda não tinha percebido, nosso país é assim. E não vai voltar atrás.

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