Roxane Gay: “Prefiro ser uma má feminista a não ser uma feminista”

Autora de “Bad feminist” fala a ÉPOCA sobre como a piada que fazia sobre visões estreitas do feminismo acabou virando um conceito e título de livro

Por PAULA SOPRANA, do Época 

Tão atual quanto a nova geração empunhar a bandeira do feminismo é o debate em torno do significado de o que é ser feminista. De forma superficial, a definição, para muitos, ainda é sinônimo de uma sequência de estereótipos que vão desde uma militante sempre raivosa à mulher que jamais pode desenvolver gosto por arrumar a casa e ter filhos. A escritora americana Roxane Gay (que também escreve colunas de opinião no New York Times e no britânico The Guardian) é uma voz central diante da polarização sobre o tema.

No seu best seller Bad feminist (Má feminista, sem tradução no Brasil), que reúne ensaios de não ficção, ela começa citando a frase de uma australiana que define de forma sucinta o que é ser feminista hoje: “mulheres que não querem ser tratadas como [insira aqui um palavrão]”. Não que Roxane defenda que o sexo feminino deva se contentar com pouco – longe disso –, o que ela sugere é que, diante da confusão a respeito do movimento, o essencial não seja perdido: a defesa de direitos iguais.

Em entrevista a ÉPOCA, a autora discorre sobre o que é ser uma “má feminista”, termo cômico que inventou para se definir ao não atender às expectativas do que imagina ser um “boa feminista”. Talvez a concepção rígida do termo não aceite suas nuances: ela gosta de ler Vogue e às vezes dirige ouvindo raps com letras degradantes (aquelas que se referem à mulher como bitch). “Prefiro ser uma má feminista a não ser uma feminista”, afirma.

ÉPOCA – Em Bad feminist você menciona que tem alguns interesses, opiniões e traços de personalidade que não se encaixam no “feminismo popular”. O que você define como popular?
Roxane Gay –
Pode significar um monte de coisas, mas quando uso essa frase me refiro principalmente à concepção rígida e estreita do feminismo, que exige perfeição das feministas e dá pouco lugar para nuances e para a intersecionalidade (conceito sociológico proposto pela americana Kimberlé Williams Crenshaw, que analisa as interações simultâneas entre diferentes categorias de identidade – racial, de gênero, de classe, de orientação sexual etc.)

ÉPOCA – A palavra feminismo ainda gera má conotação para alguns e representa estereótipos para outros. Há confusão sobre o que esse termo representa?
Roxane –
Muitas pessoas não entendem sobre o que se trata o feminismo. Eles têm ideias muito estreitas sobre o conceito da palavra. Assumem que, para ser feminista, você tem que odiar homens ou, de certa forma, se afastar deles. Na sua essência, feminismo é sobre a igualdade de gênero e leva em conta a realidade que, como mulheres, habitamos múltiplas identidades. Não somos apenas mulheres – temos raça, etnia, sexualidade, classe, identificação de gênero e por aí vai. Como feministas, precisamos considerar essa multiplicidade enquanto lutamos por igualdade.

ÉPOCA – Você passou a se autointitular má feminista como uma piada, mas esse termo representa o pensamento de tantas mulheres que talvez tenha virado um conceito. Como você enxerga isso?
Roxane –
Fiquei surpresa sobre como o título de má feminista assumiu uma vida própria. No começo, era um pouco de piada, mas fico animada em ver que as pessoas estão adotando o rótulo e reconhecendo que podemos ser feministas cheias de boas intenções e imperfeitas.

ÉPOCA – Na sua palestra no TED, você menciona que é aceitável que a mulher decida ficar em casa com crianças, só que ela ficará mais vulnerável economicamente. “O problema é a estrutura da sociedade quando ela opta por isso”, você diz. Pode explicar isso? Seria uma remuneração por trabalho doméstico?
Roxane –
Neste momento, nossa sociedade, particularmente nos Estados Unidos, não dá suporte a mulheres quando elas decidem ficar em casa para criar os filhos. Não há sistema social no caso de, por exemplo,  o casamento falhar e elas serem deixadas sem suporte financeiro. Para mulheres que estão aptas a optar livremente por ficar em casa, precisamos de um tipo de sistema especial que as protejam em sua escolha.

ÉPOCA – Você escreveu que o feminismo lhe trouxe a voz que você havia perdido [Roxane sofreu abuso sexual]. Qual a importância de compartilhar experiências e traumas com outras mulheres?
Roxane –
Eu não diria que compartilhar traumas é uma forma de feminismo, é apenas uma forma de ser humano. Dar voz às terríveis experiências que já vivemos, deixar que outros saibam que não estão sozinhos e que, se sofreram, talvez possamos os ajudar a curar.

ÉPOCA – “Elas acham que são feministas, mas se o carro delas quebrar os homens serão responsáveis por consertar.”  O que você diria a uma pessoa que tem esse pensamento?
Roxane –
Eu diria a essa pessoa que uma feminista não é medida pela sua habilidade de consertar um carro e que é absolutamente sem sentido falar uma coisas dessas. Eu entendo o que elas pensam e interpretam como inconsistência, mas isso está muito errado.

ÉPOCA – Qual sua opinião sobre a campanha He for She [Eles por elas], da ONU, que promove o engajamento de homens no feminismo?
Roxane –
No começo, eu estava cética, mas então participei do TED Mulheres 2015 e tive o privilégio de conhecer a mulher que dirige o programa da ONU. Aprendi que o projeto vai muito além do que pensei. Embora eu pessoalmente não sinta que precise convencer os homens a entrar na causa do feminismo, He for She está fazendo um trabalho inestimável em todo o mundo ao fazer homens terem o feminismo como um projeto deles.

ÉPOCA – Como você enxerga o feminismo hoje?
Roxane –
Ao passo que o feminismo evolui, eu o vejo ficando cada vez mais inclusivo e reconhecendo as mulheres do movimento. Em suas primeiras ondas, ele tendia a marginalizar as mulheres negras, as mulheres estranhas, as mulheres transexuais e as mulheres da classe trabalhadora. Jovens feministas também estão ocupando a causa de maneiras muito refrescantes e excitantes, e isso é algo que vamos continuar a ver. É excitante testemunhar.

Trecho de Bad feminist, de Roxane Gay, 2014:

“O feminismo essencial sugere raiva, falta de senso de humor, militância, princípios irredutíveis e estabelece um conjunto de regras para ser uma boa mulher feminista ou, pelo menos, uma boa mulher feminista branca e heterossexual – odeie pornografia, censure de maneira unilateral a objetificação da mulher, não satisfaça o olhar masculino, odeie os homens, odeie sexo, foque na sua carreira, não se depile – ok, este último é brincadeira. Tudo isso não chega nem perto de ser uma boa descrição do feminismo, mas o movimento tem sido há tanto tempo distorcido por falsas percepções que até quem deveria ser mais consciente acabou acreditando nessa imagem essencial do feminismo.”

+ sobre o tema

Mulheres marcham contra o machismo em Paris

Aproximadamente 100 mulheres participaram neste sábado (1º), em Paris,...

Helle Thorning-Schmidt – Berlusconi admira sem dissimular primeira-ministra da Dinamarca

Os meios de comunicação italianos destacam, esta quarta-feira, o...

Mães pela Igualdade – Carta às mães e pais brasileiros

Nós, Mães pela Igualdade, gostaríamos de pedir dois minutos...

Europa: cresce o tráfico de mulheres

Estudo sugere que prostituição forçada avançou 50% em cinco...

para lembrar

TJSP nega 83% dos habeas corpus pedidos para mulheres acusadas de aborto

Nos Habeas Corpus negados, há duas mulheres acusadas pelo...

Amantes de padres católicos pedem fim de celibato em carta aberta

 Em carta a Bento XVI, mulheres defendem que celibato...

Fabrício Boliveira: “O machismo é uma escravidão”

Capa da GQ de setembro ao lado de Emilio...

Projeto de admissão tácita de paternidade, da ex-deputada Iara Bernardi é aprovado pelo Senado

Foi aprovado na quarta-feira 04/08/2010, pelo Plenário do Senado,...
spot_imgspot_img

O atraso do atraso

A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em...

Homens ganhavam, em 2021, 16,3% a mais que mulheres, diz pesquisa

Os homens eram maioria entre os empregados por empresas e também tinham uma média salarial 16,3% maior que as mulheres em 2021, indica a...

Escolhas desiguais e o papel dos modelos sociais

Modelos femininos em áreas dominadas por homens afetam as escolhas das mulheres? Um estudo realizado em uma universidade americana procurou fornecer suporte empírico para...
-+=