‘Sabia que existia a violência policial, mas nunca tinha sentido na pele’

Dois estudantes, que foram presos e agredidos por policiais militares quando participavam de uma manifestação em São Paulo, relatam a violência sofrida 

 

Por Jéssica Santos de Souza, no Brasil de Fato

A estudante Andreza, de 18 anos (tinha 17 quando foi presa), e o garçom Igor, de 22 anos, foram presos no dia 1º de agosto durante a manifestação “Onde está o Amarildo/Fora Alckmin”, na Avenida Paulista, em São Paulo (SP).

A cena da prisão da estudante estampou capas de jornais e foi exibida em muitos vídeos na internet. Algemada, Andreza foi arrastada por dois policiais militares por alguns metros em plena avenida. Igor acabou no mesmo camburão que ela, e sua prisão também envolveu truculência: levou o chamado mata leão, uma chave de braço de um policial militar.

Um dos advogados, que esteve na delegacia para onde os dois manifestantes foram levados, contou que eles assinaram Termos Circunstanciados – procedimento comum para acusados de crimes de menor potencial ofensivo (provavelmente desacato). Por Andreza ser menor no momento da prisão, ela vai responder com base no Estatuto da Criança e do Adolescente, já Igor no Código Penal. O advogado acredita que eles não terão problemas na Justiça por conta da prisão.

Em entrevista ao Brasil de Fato, os dois manifestantes contaram um pouco sobre o momento da prisão, o tempo que ficaram em poder de quatro policiais da Força Tática, as horas na delegacia e o que os motiva a continuar nas ruas depois de tudo que passaram. Eles pediram sigilo em relação aos sobrenomes e não aceitaram tirar fotos.

Confira.

Brasil de Fato: Contem um pouco sobre vocês.
Andreza: Estudo e trabalho. Faço cursinho na Faculdade de Educação, lá na USP, e agora vou começar no emprego novo. Chama projeto Wikimapa. É sobre mapeamento de ‘comunidades periféricas’. É lá do Rio de Janeiro e veio pra cá. Vou ajudar a mapear o [bairro do] Capão Redondo, onde moro.

Igor: Eu sou garçom, faço um freelance lá em Osasco, onde moro. Inclusive fiz hoje [dia do encontro] uma entrevista para auxiliar de cozinha. Estou estudando para o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], quero fazer faculdade de Oceanografia ou Gastronomia.

Vocês sempre frequentaram manifestações?
Andreza: Nossa, já faz mais de um ano. O primeiro ato que fui foi um evento “coxinha”, o “Dia do Basta”, foi o primeiro contato que tive. Aliás, teve repressão, aquele primeiro [protesto] que a polícia cercou o pessoal lá na Paulista, a galera foi para o vão do MASP e foi massacrada. Depois, quando o [então prefeito Gilberto] Kassab tentou proibir o sopão. Depois sempre fui colando [em manifestações] com esses temas.

Igor: Comecei a ir às manifestações depois daquele vídeo de violência policial [que mostra o fotojornalista Sérgio Silva sendo alvejado com bala de borracha no olho]. A gente [ele e os amigos] já discutia política e comecei a ir a todos os atos do MPL [Movimento Passe Livre], Cadê o Amarildo?, Black Blocs.

Vocês sempre cobrem os rostos nas manifestações?
Andreza: Em todos os atos, cubro o rosto. Manifestação é um ato político e pode acontecer de quererem criminalizar aquele ato político e quem tiver com o rosto descoberto vai ter que pagar por isso, apesar da causa ser legítima. E por segurança minha também, por conta dos P2 [policiais disfarçados] fotografando. Eles sempre marcam nosso rosto, podem depois me encontrar em uma esquina e querer me levar…

Igor: Não costumo cobrir o rosto, nesta estava de lenço porque havia vários policiais filmando e vários P2. Estava com aquela máscara de pintor e um capuz. Nas outras fui com máscara de pintor, caso tivesse bomba de gás.

Contem sobre a prisão na Paulista. Vocês se machucaram?
Andreza: A gente estava chegando à Paulista, perto da Praça do Ciclista e estourou uma confusão. As pessoas começaram a correr e eu avistei algumas no chão sendo imobilizadas. Fui perguntar o motivo de eles estarem sendo presos. Foi quando ouvi [o policial identificado como Palácio dizer]: “pega essa daí também!”. Aí me jogaram no chão, botaram o pé no meu rosto, puxaram meus cabelos, fui algemada e arrastada até a viatura. Não sei o que aconteceu para eles me arrastarem, já estava imobilizada. E é muito fácil me imobilizar, porque tenho 1,60m [de altura] e menos de 50 kg. Eu já estava dominada, não houve resistência ali e nem tinha como acontecer, porque acho que eram quatro policiais em cima de mim… Só não me machuquei mais sério ao ser arrastada porque estava com duas calças jeans por medo de bala de borracha. Fiquei com algumas marcas das algemas.

Igor: Estava passando na frente da drogaria e, de repente, vimos cinco policiais batendo em um menino e fomos para cima tentar soltá-lo. Na [avenida] Brigadeiro [Luís Antônio], quando pressionamos, a PM soltou. Houve uma muvuca e do nada veio um policial que me deu duas cacetadas na cabeça, vi até estrela! Outro policial de óculos me deu uma gravata e me jogou no chão. Ele dizia que eu era dele, como se tivesse caçando. Ele me sufocou, fiquei sem respirar. Se não fosse pelos repórteres que estavam tirando foto e filmando, eu teria desmaiado. Ele acabou soltando um pouco, levantei, me agarrei no gradil e ele me algemou.

Como foi a ida para a delegacia? Contem sobre as agressões que sofreram.
Andreza: A gente rodou um pouco e parou em uma DP. Eles tiraram o Igor, o encostaram na parede e começaram a espancá-lo. E começaram uma tortura psicológica comigo, falavam que eu não ia ser ninguém na vida, que não ia poder prestar concurso público e que não tinha capacidade para ser professora [ela falou para os policiais que estava estudando para lecionar]. Um deles disse que conhecia minha quebrada e que eu devia morar mal pra caramba. Tiraram sarro também pelo fato de eu ter nascido na Bahia, e que não devia estar aqui [em São Paulo]. Eu não conseguia ver muito, porque eles [PMs] não deixavam, mas escutava gemidos do Igor e eles falando que ele era vagabundo. Comecei a passar mal por conta dos problemas respiratórios que tenho e pedi a água que tinha na bolsa, o Palácio falou que não ia dar a água, enquanto outro policial tentou me ajudar e foi advertido. Comecei a me debater e as pessoas que passavam ficaram assustadas, ai ele acabou pegando a água e me deu.

Igor: Acho que descemos a [rua]Augusta. Fomos para essa primeira delegacia. Paramos na frente, ela tem um muro de concreto. Um dos PMs falou para eu abrir as pernas, dando chutes na minha perna e no meu saco. Eles [dois PMs da Força Tática] me perguntaram onde morava, diziam que eu era vagabundo. Disseram que eu tinha jogado pedra neles. Perguntaram se eu fosse assaltado quem chamaria. Me deram socos na barriga, duas cotoveladas no pescoço. E na pior parte um deles pegou minha traqueia e me deixou sem respirar. Na segunda vez que ele fez, quase vomitei. O PM de óculos também deu um soco na minha barriga. Ele cortou minha mochila e chegou a encostar a faquinha [que usou para cortá-la] em mim. Tinha pessoas passando na rua, ai ele pegou um pedaço de cano e pedras como se estivessem comigo.

E como foi na delegacia?
Andreza: O delegado me tratou bem, perguntou como estava. Fui revistada por uma mulher, tive que tirar a roupa e fazer agachamento. Tiraram meus cadarços para entrar na cela. Fiquei algumas horas lá e ouvia algumas pessoas chegando. Quando cheguei tomaram meu celular. Só quando o advogado chegou é que meu celular reapareceu e procurei o número do meu pai. Fui depor com meu pai e o advogado.

Igor: A Polícia Civil fez a revista, tirou cadarço. Em nenhum momento eles disseram o porquê tinha sido preso, e me jogaram na cela. Só quando o advogado chegou que ele perguntou se tinha celular e se queria ligar pra alguém. Falei com o delegado na companhia do advogado. Dei o depoimento e falei tudo o que aconteceu, falei que as pedras e o cano não eram meus e que fui agredido e torturado pelos policiais. Ai voltei pra cela e fiquei mais um tempo. Fiquei esperando os outros meninos para ir ao IML [Instituto Médico Legal]. No IML, o médico perguntou como estava, mas não tirou fotos das marcas no meu pescoço.

Vocês já tinham tido contato com policiais antes desta manifestação onde vocês moram?
Andreza: O bairro onde moro, o Jardim Rosana – que fica próximo ao Capão, mas a gente fala que é Capão –, foi onde ocorreu a primeira chacina do ano. Os policiais foram e assassinaram sete pessoas. Tenho esse contato com a violência policial, então, pra mim não foi um susto o que aconteceu, porque sei que a polícia é violenta. Ela tem esse tipo de prática. Meu irmão uma vez foi parado e revistado pela Rota indo comprar pão. Ele tem quinze anos e os policiais ficaram perguntando se ele ia mesmo comprar pão. A bala na manifestação é de borracha, já na periferia é de verdade.

Igor: Onde moro nunca tive problema, nunca fui revistado. O Palácio, inclusive, falou que conhecia onde eu morava, que tinha biqueira e se me encontrasse na rua sem farda ia me encher de porrada.

Muitas pessoas passaram a falar que essas manifestações recentes são vinculadas exclusivamente às pessoas de classe média. Você que cresceu na periferia, o que tem visto?
Andreza: Até estranho quando leio algum artigo dizendo que são jovens de classe média. Se tiver, nunca tive contato. O que tenho mais contato é com estudantes que estão ralando dentro da universidade e com “gente periférica”. Com alguns amigos que tenho contato que militam também… Pra ser sincera, nunca tive muito contato com essas pessoas que a mídia fala que estão indo pra esses atos. Estamos lutando pelas coisas que usamos, como o ônibus, e contra a violência policial, que é uma realidade.

Como vocês se sentem encontrando com policiais depois de tudo que aconteceu? Vão continuar indo para os protestos?
Andreza: Estava voltando do cursinho e entrei em um circular, dois policiais entraram logo em seguida. Ai olhei para o rosto de um e escrevi um SMS [mensagem de celular] para uma amiga falando que parecia o Palácio. Fiquei muito incomodada e passei a viagem toda com os olhos fechados. Agora sinto medo. Antes sentia raiva do fato deles serem pagos para proteger, mas não ser esse o tratamento que dão para determinadas classes. No carro, na volta da delegacia, falei para o meu pai que, apesar de tudo, ia continuar indo para a rua. E ele me respondeu para tomar cuidado.

Igor: Fiquei com ódio, continuo indo nos protestos. Não vou ficar no meio da muvuca. Estou com medo. Dá raiva, não confio mais. Meu avô era PM, minha tia é da GCM [Guarda Civil Metropolitana]. Eu sabia que existia [violência policial], mas nunca tinha sentido na pele. Até pensei em mudar de país, tenho uma amiga que mora fora. Mas da cara dele [policial que o agrediu] não esqueço.

 

Fonte: Revista Fórum

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