Saúde, escravidão e busca por liberdade no Brasil no século XIX

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Jacques Ferreira Pinto
Jacques Ferreira Pinto é Doutorando em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS-Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz); Pesquisador visitante (Universidade de Harvard)

Bairros com maior percentual de população negra no Rio de Janeiro têm menor taxa de vacinação contra a Covid-19”. É o que aponta também o Mapa Social do Corona, divulgado pelo Observatório de Favelas em setembro de 2022. Por um lado, em regiões como na Zona Sul e na grande Tijuca do Rio de Janeiro, o índice de vacinação contra a Covid-19 com a primeira dose chegou a 96% e 97%, respectivamente. Nessas localidades, a população negra não passa de 38%, de acordo com os dados. Por outro lado, em regiões da Zona Norte e da Zona Oeste, a taxa de imunização com a primeira dose não ultrapassou os 78%. Nesses espaços, a população negra varia entre 38% e 82,63%.

O bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, é um exemplo cuja população negra varia entre 64% e 82%, e teve as seguintes taxas de vacinação: em torno de 70% com a primeira dose; 47% com a segunda; e apenas 21% com a segunda dose de reforço. Os dados do relatório mostram a profunda desigualdade social e racial no que diz respeito ao direito à saúde. Nesse sentido, o tema da saúde da população negra é de suma importância para ser estudado e pautado no que diz respeito às políticas públicas.

Por exemplo, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) é uma política de equidade em saúde do Ministério da Saúde, aplicada por meio do SUS. Instituída em 2009, no segundo governo Lula, essa política pública visa uma promoção plena de saúde para a população negra brasileira, de forma integral, ao considerar que as desigualdades em saúde no Brasil são fruto de injustos processos socioeconômicos e culturais, com destaque para o racismo.

Ao reconhecer o racismo como determinante social da saúde, o Ministério da Saúde conclama profissionais, gestores e movimentos sociais para agir, por meio da PNSIPN, no combate das iniquidades em saúde/doença, fruto de desigualdades sociais e raciais. Acreditamos que a História como disciplina que desfaz silêncios, produz incômodos necessários e traz à tona passados negados pode contribuir para novos entendimentos sobre a presença e agência negra no tempo, ao demonstrar como gente negra se relacionou com as questões de saúde no Brasil desde o passado.

Mais especificamente, podemos lançar nosso olhar sobre o Brasil escravista do século XIX, período de inúmeras transformações políticas e sociais em um território que tornou-se independente há 200 anos. Estudar as experiências de africanos e seus descendentes no Brasil é fundamental para reconhecer a diversidade de histórias de liberdade da gente negra no país, ontem e hoje. Nesse sentido, as experiências em torno da saúde podem ser elucidativas sobre formas de agência, ações para liberdade e redes de cuidado dentro de comunidades negras – de escravizados, livres e libertos.

Como era a saúde de africanos e seus descendentes no passado? Como era adoecer em meio a uma sociedade regida pela escravidão? Como as condições de saúde e as doenças impactavam e eram pensadas por escravizados, livres e libertos? Essas são perguntas gerais que a historiografia da saúde e escravidão vem se debruçando com inúmeros trabalhos desde ao menos o início dos anos 2000.

Os estudos históricos da confluência entre saúde e escravidão vêm produzindo uma série de reflexões historiográficas sobre as condições de vida, o trabalho, as doenças e ações para cura entre escravizados, livres e libertos na História do Brasil durante o século XIX. Por meio de um olhar renovado para fontes tradicionais, como inventários, testamentos, registros diversos junto a materiais médicos (receituários, tratados de saúde e outros registros), profissionais da área vêm compreendendo cada vez mais as nuances dessa (nossa) história.

De forma geral, as linhas de pesquisa desse campo temático focam em três grandes eixos de investigação. O primeiro é sobre as relações entre o pensamento médico e a escravidão; o segundo foca no estudo de doenças, suas nomenclaturas e classificações; e o terceiro diz respeito ao estudo dos sujeitos sociais, dos agentes especialistas nas artes de curar como curandeiros, barbeiros-sangradores, parteiras, feiticeiros, entre outros.

Cirurgião negro colocando ventosas. Fonte: Aquarela de Jean Baptiste Debret, 1826.

A pesquisa em curso se conecta de forma mais latente aos dois primeiros eixos, pois investiga a busca por liberdade por motivos de saúde e doenças em áreas rurais em Minas Gerais durante o século XIX. Mais especificamente, estudamos as muitas negociações para liberdade entre escravizados, médicos e administradores por meio de pedidos de alforria. Nesses pedidos, as principais justificativas envolviam as condições de saúde, sintomas e o adoecimento dos escravizados no chamado Vínculo de Jaguara, na primeira metade do século XIX.

O Vínculo de Jaguara foi um conjunto de fazendas que existiu entre o final do século XVIII e meados do XIX, com propriedades ligadas ao Estado – inicialmente à Coroa Portuguesa e posteriormente ao Império do Brasil. A fundação do Vínculo se deu por meio de “vinculação”, ou seja, as terras anteriormente privadas passaram a fazer parte do patrimônio do Estado (Coroa Portuguesa), ainda que administradas por particulares.

Fotografia do Vínculo de Jaguara. Autoria de Augusto Riedel, 1868-1869. Fonte: Brasiliana Fotográfica – Fundação Biblioteca Nacional.

O Vínculo de Jaguara, localizado na região de Sabará, Minas Gerais, se destacava pela produção agrícola, pela pecuária, extração de ouro e uma indústria têxtil doméstica. Para além disso, o Vínculo também esteve envolvido com obras de assistência, visto que dentre os requisitos para sua “vinculação”, seus administradores deveriam se comprometer com a construção de, ao menos, um hospital na região, um seminário para crianças pobres e o envio de rendimentos para algumas instituições de caridade.

Assim, a produção de riqueza nesta região, realizada fundamentalmente por mão-de-obra escravizada, deveria ser revertida para obras pias de acordo com os termos de fundação de tais fazendas. Por exemplo, já em 1802, se registrou em um inventário mais de quinhentas pessoas escravizadas trabalhando e vivendo naquelas fazendas. Dentre elas, identificamos ao menos trinta indivíduos que solicitaram liberdade por suas condições de saúde e doenças.É o caso de Maria Canela Correia, que solicitou liberdade em 1845, aos cinquenta anos de idade. No seu pedido por alforria, Maria afirmava que esteve “sempre ocupada no serviço do mesmo Vínculo no que tem adquirido moléstias do seu sexo, bem como uma inflamação na madre com corrimento de bobas, e outros achaques crônicos que a impossibilitam de poder prestar serviço”. Além de afirmar sua condição precária de saúde, focando numa inflamação em seu útero (“madre”) com feridas e sangramentos (“corrimento de bobas”), a escravizada Maria Canela Correia também assinalou poder dar conta de pagar o valor monetário associado ao título de liberdade que reivindicava.

Requerimento de liberdade por Maria Canela Correia. Vínculo de Jaguara, 1845. Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.

A posse de valor monetário de Maria Canela Correia, para compra de sua alforria, também pode indicar as redes de sociabilidade e solidariedade no horizonte de vida da gente negra nessa região, com a formação de famílias em torno dessas estratégias de liberdade, por exemplo. Na mesma localidade, o Vínculo, encontramos outros tipos de requerimento, como um pedido feito por um grupo de escravizados aos administradores locais, no qual solicitavam a possibilidade de trabalhar na extração de minérios em dias santos e aos domingos, para seu próprio sustento. Esses dois documentos encontrados e analisados, juntos a outras fontes, indicam a ação de grupos de escravizados em torno da busca por liberdade e suas conexões com questões de saúde no Brasil escravista do século XIX.

Nas fazendas do Vínculo, alguns registros dão conta ainda de ao menos um liberto que atuava na condição de “enfermeiro” na localidade, provavelmente tratando de seus companheiros ainda escravizados. Médicos acadêmicos também atuaram nas fazendas, produzindo diagnósticos sobre os pedidos de alforria que envolviam questões de saúde, no sentido de gerar subsídios para os administradores concederem ou não a liberdade aos requerentes. Se torna interessante notar a atuação desses médicos, com seu conhecimento acadêmico sobre saúde, em relação às muitas percepções dos escravizados e proprietários sobre o mesmo tópico no que diz respeito à obtenção das alforrias.

Pelas análises aqui realizadas, ainda de forma preliminar, é possível afirmar que africanos e seus descendentes manejaram as condições de saúde e as doenças enquanto estratégias para a liberdade nas fazendas do Vínculo de Jaguara, Minas Gerais. Em negociações com médicos e administradores locais, a população negra ali presente – escravizados, livres e libertos – pôde enxergar em seus processos de adoecimento e busca por cura dos males do corpo possibilidades para a conquista da liberdade, conectadas às suas famílias e companheiros.

As considerações aqui contidas não encerram as discussões historiográficas com respostas em definitivo. Mais do que isso, elas fornecem novos elementos para demonstrar e dimensionar as ações diversas de pessoas negras em torno da saúde no passado escravista. Se o adoecimento era uma realidade cruel por si só, as condições de trabalho em meio à escravidão acabavam por exacerbál-lo. Mas as possibilidades de cura e as experiências de liberdade da gente negra sempre estiveram presentes nesses processos, agenciando essas duras realidades. Por fim, cabe ressaltar que as análises que privilegiam a saúde e a escravidão nesses meandros do nosso passado podem contribuir para compreensões em longa duração a respeito das desigualdades raciais no Brasil, como as colocadas (ou novamente escancaradas) com a pandemia de Covid-19. Junto a isso, as experiências do passado da população negra nos indicam que estratégias e formas de luta, tanto para curar quanto para libertar, sempre fizeram parte da história de africanos e seus descendentes no Brasil e demais partes da Diáspora.

Assista ao vídeo do historiador Jacques Ferreira Pinto no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF07HI15 (7º ano: Discutir o conceito de escravidão moderna e suas distinções em relação ao escravismo antigo e à servidão medieval); e EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância de ações afirmativas).

Ensino Médio: EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência (física, simbólica, psicológica etc.), suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos).

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