Se nossos filhos fossem tratados como nossas filhas

Venha comigo. Vamos abrir a porta para um universo paralelo. Você pode abrir esta porta usando a chave da imaginação, como em Além da Imaginação. Aqui neste mundo paralelo as regras são diferentes, porque os papéis de homens e mulheres são invertidos. Pais amorosos e professores aceitam esta cultura estranha como se não fosse tão ruim assim ou como se até fosse boa. Como se o inverso dela só pudesse existir na cabeça de malucos ou escritores de ficção científica.

por  no BrasilPost

Vamos embarcar juntos nesta viagem e observar a infância de um bebê menino, nascido nesta realidade alternativa, conforme ela é vista através dos olhos de sua mãe.

No útero: Você está curtindo seu chá de bebê; todo o mundo já sabe há vários meses que seu filho será menino. Depois de ter tido uma menina primeiro, é tão maravilhoso finalmente ter um garotinho tão precioso. Você ganha presentes de nenê, escolhidos com cuidado e dando destaque para o gênero de seu filho. O presente que todas as convidadas mais gostam é um macacãozinho branco escrito, em letras azuis, “Futuro Marido-Troféu”. Por um instante você acha um pouco estranho, até inapropriado, mas todas suas amigas acham uma gracinha, então você conclui que deve ser mesmo.

Nascimento: Seu bebê chegou, finalmente, e você lhe deu o nome Logan! Ele é saudável, tem bochechinhas rosadas e pesa quase quatro quilos. Na hora de voltar para casa, você se despede das enfermeiras simpáticas e eficientes que cuidaram tão bem de vocês dois. Uma delas lhe diz: “Ele é lindo! Aposto que um dia será modelo.”

1 ano: Parabéns a Logan no seu primeiro aniversário! Você faz uma festa simples, que custa pouco; convida apenas a família e um ou dois amigos. A Vovó traz um bolo do supermercado. O bolo tem cobertura azul, com uma coroa em cima, e diz “Para o Pequeno Príncipe Aniversariante”.

2 anos: Este ano houve muitos presentes no Natal, e, como a maioria das criancinhas dessa idade, Logan curte o papel de presente e as fitas mais que os brinquedos propriamente ditos. Ele ganha tantos presentes maravilhosos! Um deles é um conjunto de instrumentinhos musicais, todos azuis clarinho. Há uma caixa de bloquinhos especiais para meninos, feitos de plástico azul. Há uma camisetinha azul na qual vem escrito “Sou bonito demais para ler livros, então minha irmã os lê para mim”. Logan ainda não sabe ler e não entende os dizeres, mas todos os adultos acham graça, então ele também dá risada.

3 anos: Logan é um garotinho ativo no jardim de infância. Quando ele corre pela casa, você ouve o som da sola dos sapatinhos sociais brilhantes dele sobre o piso de madeira. De vez em quando ele escorrega nas solas lisas e cai com o bumbum no chão, mas se levanta de novo na mesma hora. Lá fora tem uma balança nova e outros brinquedos. Logan adora tentar subir o escorregador correndo, mas não é fácil naqueles sapatos de sola lisa. Quando ele vai à escolinha nesses sapatos, os professores notam que ele tem dificuldade em correr e subir nas coisas, como as meninas, mas eles se derretem em elogios, dizendo que ele fica tão fofo nos sapatos.

4 anos: Logan já está no Jardim II e realmente curte brincadeiras de imaginação. Você adora ficar vendo-o brincar com os meninos e fazer coisas de menino. Na escola há um forno azul brilhante, um aspirador de pó azul fosco e uma estação de construção que as crianças adoram – é um enorme baú de caixas de Lego azul e roxo com os quais dá para construir academias, shoppings e pet shops. Ao lado desse baú há outro cheio de bonecos fashion meninos, todos de olhos sensuais, lábios carnudos e roupas sexy e justas. Os meninos sabem quem são esses bonecos: são meninos! Eles evitam brincar com as maletas de médico, os carrinhos e os jogos de tabuleiro multicoloridos. São brinquedos de menina.

5 anos: Os anos estão passando voando. Logan já está na pré-escola. No primeiro dia de aula o professor faz um monte de perguntas às crianças, para que possa conhecê-las melhor. Quem tem um bicho de estimação em casa? As crianças falam de cachorros, gatinhos, peixinhos e hamsters. Qual é sua cor favorita? Verde! Vermelho! Preto! Amarelo! Rosa! Marrom! Laranja!, dizem as meninas. Azul! Dizem todos os garotos menos um, que fala Roxo! Nenhuma menina fala em azul ou roxo. Você também percebe isso e acha um pouco estranho, mas, quando o menciona a uma amiga, ela diz que isso é natural em se tratando de meninos e que é tão bom que os meninos possam ser masculinos.

6 anos: Logan está aprendendo a ler! Há uma quantidade enorme de livros na classe dele, e ele tem uma preferência natural por histórias sobre príncipes. Ele chega a ir à escola quase todo dia usando sua fantasia de Príncipe Encantado e consegue não sujá-la. Ele sonha em ser rico quando crescer, morar num castelo e se casar com uma linda princesa. Você acha tão bom que ele está aprendendo a ter as qualidades importantes de um príncipe: bondade, higiene, boa apresentação e apreciação pelas coisas boas da vida. Mas você queria que ele também gostasse de ciências, então compra para ele um livro intitulo O Príncipe Astronauta. A ilustração encantadora da capa mostra um astronauta usando roupa de astronauta azul, com glitter e com uma insígnia de coroa no peito. Você acha o máximo que Logan pode ler uma história sobre ser príncipe e astronauta ao mesmo tempo!

8 anos: Na terceira série, Logan tem que fazer uma redação curta e simples sobre uma “meta” que ele tem na vida. Ele fica dividido: quer ser presidente e também quer ser príncipe. Então ele escreve sobre as duas coisas. Ele pensa que, quando crescer, talvez vire um príncipe que também é o presidente e assim, quando chegar à Casa Branca, vai poder usar leggings de príncipe e uma coroa cheia de pedras preciosas. Mas a “fase de príncipe” logo passa. Logan encontra sua redação anterior e diz a você: “Príncipe é coisa de criancinha. Não quero mais ser isso.” Quando você responde que ele ainda pode virar presidente um dia, ele a corrige: “Não, mãe, quero ser um cantor famoso, modelo ou astro de cinema, como todos os garotos”.

11 anos: Ensino médio! É todo um novo mundo, com salas de aula diferentes, professores diferentes e coleguinhas que parecem ter mudado muito durante as férias de fim de ano. Às vezes Logan faz de conta que é burrinho, para que as meninas gostem dele. Ele sente pressão para ser como os outros. Ele quer se vestir como os outros garotos, usando roupas que você e o pai dele acham justas demais, mostrando seu corpo um pouco demais. Logan percebe que os garotos na televisão e no cinema são sexy e ele também quer ser, então ele enrola a bainha de seu shortinho azul turquesa para que fique ainda mais curtinho, torcendo para não ser flagrado na escola por infração das regras. Ele aprendeu a percorrer os corredores da escola com ar de quem não está nem aí, mas olhando de soslaio para ver se as meninas estão admirando seu corpinho.

14 anos: Logan jogava futebol havia vários anos, mas agora desiste, de repente. Quando joga uma partida ele fica suado e despenteado, e ele não gosta da aparência de suas pernas quando está correndo. Sabe que as meninas podem estar olhando para ele e fica envergonhado. Mas tudo bem. Ele tem muitos amigos meninos que também concluíram que praticar esportes os deixa asquerosos, então agora o que eles fazem é ficar na arquibancada, assistindo às partidas das meninas e torcendo.

17 anos: É hora de pensar em que faculdade fazer. Logan está animadíssimo com este novo capítulo em sua vida. Ele tem vontade de fazer vestibular para engenharia e talvez faça, mas sabe que quem manda no mundo são as mulheres e que ele terá que ser duas vezes melhor que elas para que pensem que ele é metade tão bom. Ele vai enfrentar muito sexismo e assédio sexual no trabalho. Vai receber menos que as mulheres – todo o mundo sabe que elas são naturalmente melhores em ciências e coisas afins. Em seu íntimo, ele se pergunta se vai conseguir ser bonito, sexy e também ser um bom engenheiro químico e se algum dia vai conseguir equilibrar mulher e filhos com esse tipo de emprego. Você fala a ele que, mesmo que ele veja esses estereótipos na mídia o tempo todo, a verdade é que o homem é capaz de fazer tudo o que a mulher faz.

21 anos: Agora Logan é adulto e está no último ano da faculdade, começando a fazer entrevistas para empregos possíveis depois de se formar. Ele sempre se veste bem para as entrevistas, usando um modelito que emagrece e o deixa bonito, mas também com jeito profissional. Percorrendo as ruas da cidade onde espera encontrar um futuro cheio de felicidade e sucesso, ele passa por outdoors e anúncios em ônibus com homens de tanga e corpinho impecável, fotoshopado. Logan quase não presta atenção às fotos. Ensaiando mentalmente a entrevista que vai fazer, ele anda na calçada, absorto em seus pensamentos. “Sorria, gostoso!” uma mulher grita para ele. “Você fica mais bonito quando sorri.”

Vamos deixar a história de Logan parar aqui, porque aqui é um lugar tão bom quando qualquer outro, e lhe desejamos boa sorte. Obrigada por me acompanhar nesta jornada da imaginação. Vou levá-lo agora de volta ao mundo que você conhece, aquele que precisa ser mudado.


Lori Day é psicóloga educacional, consultora e orientadora de pais, dando atendimento na Lori Day Consulting, em Newburyport, Massachusetts. É autora de Her Next Chapter: How Mother-Daughter Book Clubs Can Help Girls Navigate Malicious Media, Risky Relationships, Girl Gossip, and So Much More, e dá palestras sobre como educar meninas para serem autoconfiantes diante de uma cultura de marketing e mídia que as enfraquece. Você pode entrar em contato com Lori no Facebook, Twitter ou Pinterest.

+ sobre o tema

Carta aberta a uma mãe

Carta aberta de uma mãe que não sabe o...

Terceirização tem ‘cara’: é preta e feminina

O trabalho precário afeta de modo desproporcional a população...

Exclusão de gênero do Plano Nacional de Educação é retrocesso, diz educador

Termo foi retirado também de planos municipais e estaduais...

Arquitetura dos direitos reprodutivos e ameaças ao aborto legal e seguro

Iniciamos esta reflexão homenageando a menina de 10 anos,...

para lembrar

spot_imgspot_img

Vamos a desprincesar! Reflexões sobre o ensino de história à partir da presença de María Remedios del Valle na coleção Antiprincesas

Lançada em 2015 em meio à profusão de movimentos feministas, a coleção de livros infantis Antiprincesas da editora argentina independente Chirimbote se tornou um...

Sonia Guimarães, a primeira mulher negra doutora em Física no Brasil: ‘é tudo ainda muito branco e masculino’

Sonia Guimarães subverte alguns estereótipos de cientistas que vêm à mente. Perfis sisudos e discretos à la Albert Einstein e Nicola Tesla dão espaço...

Em encontro de Geledés sobre empoderamento econômico em Nova York, organização cobra políticas públicas voltadas às mulheres negras

“Esta é uma oportunidade para debater o impacto das questões cruciais relacionadas à (in)visibilidade da raça, quando falamos em gênero, para refletir sobre pobreza...
-+=